OATH: Crónicas de Batatada e Exílio


Artigo escrito por Francisco Maia.

Por onde começar quando falamos de Oath? Poderia começar a descrever o jogo mas não acho que isso lhe faça jus. Mais que um jogo isolado, Oath é o fim de uma tese, ou pelo menos o seu ponto mais crítico. Para completa transparência, acho melhor indicar que sou fã acérrimo de tudo em que Cole Wehrle toca, desde Root a Pax Pamir, passando por An Infamous Traffic, e o meu tão-querido John Company. O homem sabe desenhar jogos, caraças! Mas mais que isso, compromete-se sempre a explorar um argumento qualquer com as mecânicas frias dos jogos de tabuleiro para que melhor possamos perceber o que afeta as dinâmicas que permeiam a sua temática.

Em Oath, o argumento debate a seguinte questão: o que faz com que reinos e impérios nasçam, triunfem e inevitavelmente padeçam num fatídico declínio? Porque caiu Roma? A pergunta não só é realmente interessante como desperta a curiosidade de qualquer jogador, especialmente aqueles que jogam jogos históricos. Começamos o jogo na mais ligeira assimetria: ou somos a Chanceler do reino em questão, ou somos a aristocracia exilada. Em termos de regras, maioritariamente são equivalentes, mas em termos de posicionamento - coisa que acaba por ser o ganha-pão de Oath, não podiam ser mais diferentes.

Em Oath ganha quem providenciar ao reino o que o reino precisa. Em cada jogo estará presente apenas uma de quatro ideologias (condições de vitória) que poderão consistir em controlar mais territórios que os adversários, contar com o apoio do povo, dominar os segredos e história da nação, ou possuir o maior espólio de relíquias e artefactos. A Chanceler está encarregue de manter qualquer que seja a ideologia deste jogo em particular, com a ajuda dos seus Cidadãos (Exilados convertidos ao poder do Império). Se o conseguir fazer, fantástico - mantém-se Chanceler e erguem-se monumentos à sua majestosidade. Mas se algum dos Exilados mostrar maior perícia que ela, usurpam de imediato o seu trono. Até aqui é um jogo de puxa-e-estica comum a demasiados jogos. Mas agora vejamos o que faz Oath de diferente.

É que, escondidas no baralho do mundo de Oath, estão cinco visões: cinco promessas de um reino melhor para os cidadãos. Qualquer exilado, ao encontrar estas visões pode fazer um voto (oath, lá está) na direcção das ideologias de que falei. E aqui é onde a coisa começa a ficar gira. Vamos imaginar o seguinte - a Chanceler Beatriz domina o reino com um punho de ferro inigualável, claramente a sua dinastia estará para todo o sempre no poder. Mas alto, senão quando dos confins das províncias se ouvem rumores de Artur, um aristocrata de uma família há muito exilada, que promete um reino do povo e para o povo. Um reino onde as riquezas não ficam na mão de um punhado de sangues-reais, mas sim daqueles que o ganham. Esta é a sua Visão de Rebelião. Isto agrada. Mas esta visão terá de ganhar tracção. Terá de conquistar o favor do povo com a distribuição das riquezas, com pagamentos justos. É difícil, até porque Beatriz não vai ficar de braços cruzados à espera que o consiga fazer. Mas se o fizer, vitória: a visão de rebelião destrona a Chanceler e coloca Artur no assento real.

E agora posso falar do que torna Oath único: o próximo jogo começará com o Voto que ganhou o jogo anterior, com o Exilado que o prometeu como Chanceler, e com as terras por si controladas como berço metropolitano desta nova Era: para Artur se manter no poder, terá de manter também a ideologia que prometeu ao povo na sua Visão. Quem quiser usurpá-lo terá de o fazer melhor que ele, ou ter uma outra Visão. Portanto se o primeiro reino era um reino sustentado pelo amor ao ferro e fogo da conquista e hegemonia bélica, este novo reino é uma ode à democracia estável. E é assim que Oath vai contando uma história de poder, uma história de como nascem os impérios, como triunfam e como inevitavelmente padecem num fatídico declínio. Vai evoluindo com os jogadores e as suas escolhas, com os seus desafios e dores. No final, se houver um dia um final, ficam apenas mitos registados em fósseis antigos - parte verdade, parte lenda, parte ressabiadice - e uma viagem para recordar de como vimos civilizações erguerem-se e cair.


Avaliação D.I.C.E.

Dinâmica

Aqui é onde o jogo pode perder muita gente interessada, mas também é aqui que me conquista. Oath é um jogo de bater na jogadora que vai em primeiro, ponto final. Kingbashing, O Jogo. A qualquer momento há alguém na liderança, alguém numa posição mais sólida, e esse alguém vai levar cacetada de toda a gente. Temos de estar prontos para isso ou este não é o jogo para nós. Mas mais que isso, é um jogo em que muita coisa é determinada pela sorte - raramente a vitória depende apenas no talento estratégico. Para dar um exemplo, e purgar as minhas mágoas, no último jogo que joguei aconteceu que preparei a minha Visão (precisava do apoio do Povo) às escondidas, muito caladinho. Eu era Cidadão, e não Exilado, portanto fiz a minha parte de lacaio até ao momento certo em que me torno dissidente, abandono a vassalagem, proclamo a minha Visão de Rebelião, e conjuro um exército tremendo para me aquecer as costas. O maior golpe de estado que esta terra já viu. Vira-se a mesa contra mim, como seria de esperar. Se eu aguentar até ao meu próximo turno, este reino é meu. O Luís larga tudo e atira-se contra os meus soldados. Nada. O Marco estava entre a espada e a parede mas não pode deixar-me passar sem levar na cabeça. Nada. Chega o turno do Chanceler. Mas antes, como é regra a partir de um certo turno, rola um dado para ver se acaba o jogo (eu achava que esta mecânica iria ser terrível mas é excelente). Se sair seis, ganha ele. Qualquer outra coisa, segue o jogo e eu fico com uma probabilidade gigante de ganhar. Sair um seis é uma probabilidade de 16%. 'Tou seguro.

Mas não devia. Não é que saiu a m**** do seis????

Pá, mas ficou bem. A emoção que aquele roll trouxe para a mesa, tudo debruçado para o ver, fotografias e galhofa depois - é honestamente para isto que jogo jogos de tabuleiro. E parece-me tematicamente rico: um prometedor pretendente ao trono, que lança uma campanha fortíssima contra o Chanceler, apenas para chegar tarde demais... a coroação da filha do Chanceler já conquistou os corações do povo, que esquece o pretendente num piscar de olhos. A dinastia está segura.

Não é que a estratégia não tenha parte em Oath, tem e não é pouco. Mas Oath é um jogo de contar histórias. Não podemos de todo estar muito apegados às nossas estratégias ou planos, mas sim compreender que a mesa está a contar essa história em conjunto, com destinos e acidentes à mistura. Mas para mim não houve até agora nenhum capítulo que não tenha sido memorável.



Integração Temática

Oath é o seu tema. Absolutamente nada, nem mesmo as dinâmicas mais abstratas, está isento de uma forte ligação ao centro temático do jogo. Penso que já tenha ficado claro de que forma o contexto dos jogadores se enquadra no tema, mas queria comentar como Oath mantém o seu mundo vivo.

Existem seis tipos de populações no jogo que formam os seis naipes das cartas que vão compor o nosso reino. Podemos considerá-los clãs, mas a verdade é que se parecem mais com aspectos da sociedade. Por exemplo, temos os intelectuais (Arcane), os nómadas (Nomads, duh), a arraia miúda (Hearth), os belicosos (Discord), e por aí em diante. Em qualquer outro jogo isto seriam apenas naipes para dar algum sabor ao jogo, mas aqui funcionam de uma forma completamente orgânica. É que para além das cartas, cada naipe tem um banco de influência associado a si. Quando eu pago aos intelectuais para me ajudarem a recrutar soldados em aldeias em que se encontrem, isso enche-lhes os cofres. Quando alguém lhes oferece segredos a troco do cheiroso dinheirito, isso esvazia-lhes os cofres. A economia é quase completamente fechada. O que isto significa é que se alguém vir que estou a utilizar os meus aliados para angariar fundos, pode tentar chegar lá primeiro e sugar o tutano da economia antes que eu possa dizer "olha aí, ó". Tudo isto cria uma noção de que estamos mesmo perante um reino vivo, com um certo clima político, uma classe explorada e uma burguesia anafada; particularidades que é sem dúvida preciso ter em conta quando delineamos os nossos planos. Esticamos a corda demais de um lado, e ela não sobra do outro. Sussurro ao ouvido esquerdo deste conselheiro, mas os meus rivais sussurram no direito.

Para além disto, ainda não expliquei o que é exactamente um Cidadão. É que a Chanceler começa o seu mandato com acesso a despojos de impérios já idos, e seria muito ganancioso ficar com tudo para ela. Como tal, e no espírito da partilha, a Chanceler pode oferecer relíquias aos Exilados de forma a aliciá-los à cidadania. Tornar os inimigos em vassalos. Mas claro que nada é tão simples: quando um Exilado se torna Cidadão, não quer dizer que se tenha esquecido dos rancores que guarda. Quer dizer que sabe jogar o jogo. E portanto a luta que era externa passa a interna: o Cidadão agora quer que o Império triunfe enquanto ele cativa maior influência no mesmo, através de relíquias, segredos, e favores. No momento de vitória Imperial, são os próprios concidadãos que o coroarão Chanceler.

Oath é o seu tema. E o seu tema é Game of Thrones Hiper-realista.


Complexidade

Leder Games moveu mundos e fundos para aumentar a acessibilidade deste jogo a malta que não esteja habituada a jogos mais pesados - o seu cenário de introdução toma a forma de um tutorial em que as jogadoras simplesmente vão obedecendo ao livro no seu turno, enquanto narram as suas jogadas. Na verdade, o jogo não é assim tão complicado mas é profundamente opaco. O primeiro jogo foi loooooongo e difícil. Ninguém sabia muito bem o que devia estar a fazer, muito menos como o fazer, principalmente porque ninguém ainda tinha visto um jogo completo de Oath. Os seguintes foram muito mais fluídos, até ao ponto em que apenas algumas regras precisam de ser revisitadas.

Isto está intrinsecamente correlacionado com a riqueza temática de Oath. O jogo é realmente um pouco complexo mas as coisas simplesmente fazem sentido temático, o que ajuda a manter a maior parte das regras presente. No entanto foi necessário estar constantemente a consultar o livro de regras para pequenos detalhes, especialmente no que toca a combates. É um jogo relativamente fácil de jogar, mas não é um jogo fácil de aprender. Devido à falta de assimetria acentuada acaba por ser um pouco mais simples que Root, mas continua a ser um jogo onde é muito aconselhado pelo menos uma pessoa na mesa saber o que está a fazer.


Entretenimento, Design e Arte

Outro destaque deste jogo é a arte. Como de costume, a arte é desenhada pelo artista residente da Leder Games, Kyle Ferrin (Vast, Root, Fort), que lhe dá aquele charme enganador de que vamos jogar um jogo para a família toda e não um massacre sanguinário mas fofinho. Mais de 300 ilustrações diferentes dão realmente alma às populações que habitam o mundo de Oath fazendo-nos testemunhar o que seria o dia a dia de alguém a viver em tal reino, algo a que já nos tinha habituado em Root. No entanto, penso que existe um certo cuidado neste jogo no que toca à arte também contar uma história. Começo pela parte mais interessante para mim: a capa do jogo.

A ilustração central de Oath é um claro tributo à série de pinturas O Curso do Império de Thomas Cole, um quintíptico determinado a demonstrar o progresso natural das civilizações desde a sua incepção até ao seu inevitável declínio e desaparecimento. É realmente uma peça muito forte que demonstra a atenção que o jogo presta ao argumento que lhe apontei na introdução desta análise: a própria capa do jogo evoca um sentido de grandiosidade, de história dinâmica e complexa, e no final, de fado trágico e incontornável.
Algo que também é preciso destacar é a Crónica. Como espero ter deixado claro, Oath é "um jogo que se lembra" e como tal podemos (e devemos!) registar a narrativa dos nossos jogos sob a forma qual mais quisermos expressar as nossas contendas no jornal da Crónica. Não podia deixar de partilhar aqui a arte fantástica que narra o último jogo que joguei:

A magnífica pintura rupestre do talentoso Pedro Silva

Se virem bem, está aí escrita a história toda que falei mais acima, o meu golpe de estado magnífico e a sua derrota estrondosa. Isto é um pormenor absolutamente central de Oath: isto são histórias que passamos aos nossos "netos". Daqui a cinco, dez jogos ainda olharemos para trás e veremos as emoções que iniciaram um complexo movimento de progresso no reino. As lendas do reino, os seus mitos que moldam o presente. Não conheço nenhum jogo que reproduza este tipo de imersão total no que é uma narrativa viva.

Em termos de design, penso que esteja muito bem conseguido mas não esperava menos de uma equipa com tantos louros na mesa de cabeceira. No entanto, se a iconografia é extremamente prestável, também é imensa e ainda agora nos vemos a correr para os decentes player aids para decifrar certos hieróglifos nas cartas. De qualquer forma, a presença de mesa de Oath é inegável. As cores fortes contam também elas uma história de temporadas e estações - da garrida Primavera verde ao calmo e estoico castanho Outonal, e o silencioso azul do Inverno - refletindo mais uma vez a temática central. Acoplando isso à incrível produção do jogo, é suficiente para transformar Oath de um jogo qualquer na bela do baile.


Considerações Finais

Oath é absolutamente incrível. Tudo aquilo a que se compromente, entrega e entrega bem. É um jogo épico com uma escala que nunca antes tinha visto, e que não sei se será fácil para futuros designers emularem. É um jogo que cresce connosco, uma história que vai sendo contada não pelo livro de regras mas pelas decisões dos jogadores, pelos seus amores e ódios. 
O jogo é complexo e difícil de levar à mesa. Devido à sua componente inerentemente narrativa, não me parece um jogo que faça muito sentido jogar com um grupo diferente de cada vez. É preciso um grupo dedicado ao jogo para se poder tirar completo partido do que tem para oferecer. Mas se tiverem esse grupo, se conseguirem encontrar malta que consegue abdicar da necessidade de controlo absoluto e se queira dedicar a uma tarde bem passada conquistando impérios e contando histórias, alguém que não se frustre quando as probabilidades destroem a sua vitória certa, então não há melhor que Oath. O jogo onde nascem impérios, triunfam, e inevitavelmente padecem num fatídico declínio.

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