Afinal de Contas o Que Raio É um Jogo Económico?

Escrito por Francisco Maia.

Esta pergunta surge vezes e vezes sem conta no meu dia a dia. O carteiro chega, "Lemon, o que é um jogo económico?". Ligo a televisão e lá está o Rodrigo Guedes de Carvalho "hoje às 19h perguntamos a Lemon o que é um jogo económico."

Estou farto. Vou terminar o debate de uma vez por todas e cessar todos os males do mundo.

Para esta conversa ter pés e cabeça, é necessário admitir duas coisas: primeiro, não estou aqui para ensinar nada a ninguém. Isto é a minha definição de jogos económicos e não deriva de absolutamente nada que não experiência pessoal. Segundo, rótulos são divertidos! É uma forma de estruturar sistemas, facilitar comunicação, e não devem ser levados muito a sério.


Como definir um jogo Económico?

Então vamos a isso. Os três ingredientes para definir a  Pureza Económica ™ de um jogo de tabuleiro:

  1. O jogo deve simular primariamente uma dinâmica de mercado, e não apenas possuir um mercado como adição a outros sistemas centrais.
  2. Para além de funcionarem como determinantes de vitória, Victory Points devem ser a moeda única do jogo.
  3. Deve ser desprovido de uma infraestrutura de produção de VPs alheia à simulação de mercado e moeda única.

Como já devem estar a pensar, isto não pode ser preto e branco. Estas três directivas apontam para a pureza de um jogo na sua aproximação a uma simulação económica e será possível que um jogo se comprometa com uma e não com as outras. Jogos caem num espectro e não num binómio de ser ou não económico. Mais sobre isto lá em baixo.

Simulação de Mercado

"O jogo deve simular primariamente uma dinâmica de mercado, e não apenas 
possuir um mercado como adição a outros sistemas centrais."

Se estamos a falar de jogos, estamos a falar de simulações mais ou menos simplificadas de sistemas reais, sejam de produção, economia, guerra, transporte, etc. Se um jogo económico procura simular um sistema do mesmo género, então tem de simular as suas características base, nomeadamente a mais pertinente para jogos - procura e oferta, e é na satisfação dessa oferta que os VPs e moeda são gerados.

Mais do que isso, existe uma flutuação financeira gerada pelos intervenientes neste mercado. Embora um dólar seja um dólar, o resto dos objectos valiosos (seja uma carta, um lugar no mapa, uma share, um recurso) tendem a flutuar de acordo com a estima que os jogadores lhe derem durante o jogo. A jogabilidade dos Económicos tende a ser o mais emergente possível - os valores das acções dos jogadores dependem quase unicamente do que os outros jogadores estão a fazer e não do conjunto de regras do jogo.

Poderão já estar à minha frente e terão previsto a conclusão lógica disto: há certas mecânicas e mecanismos que são inerentemente económicos, por exemplo leilões e especulação. Vejamos então um exemplo.

Em  Modern Art  os jogadores têm uma mão de cartas (quadros de arte) e no seu turno decidem pôr um a leilão. Quem der mais, fica com o quadro. Quanto vale o primeiro quadro posto a leilão no jogo? Literalmente ninguém sabe. O valor real desse quadro vai ser definido não só pelas próximas jogadas dos jogadores, mas também pela escassez ou abundância dos quadros colocados em jogo

Um exemplo contrário a isto seria uma abóbora no  Agricola . Embora o interesse nela para efeitos de facilitação de outras acções possa variar, o seu valor absoluto não varia. Vale 1VP ou 1 Comida.

Cash Rules Everything Around Me

"Para além de funcionarem como determinantes de vitória,
Victory Points devem ser a moeda única do jogo"

Falemos então de abóboras. Em Agrícola temos 3 moedas: comida como sustento, comida como capital, e animais. O rico capital pode ser trocado por mais benefícios, o sustento por sobrevivência, e os animais por comida. O capital pode comprar formas de fazer VPs, mas no final não determina vitória. O que o faz é a eficiência com que esse capital foi utilizado.

Num jogo Económico é essencial que se ponha na balança a moeda e a vitória. Em palavras simples - cada VP é uma moeda. O jogador está a utilizar pontos de vitória de forma a tentar exponenciar os seus ganhos de capital, e consequentemente de pontos de vitória. O capital não é só uma ferramenta transformativa com um objectivo - o capital é o objectivo. O pesadelo de Marx.

No Modern Art eu preciso de dinheiro para comprar quadros. Mas para fazer dinheiro preciso de vender quadros. Mas no final do jogo, o dinheiro que eu tiver é a minha pontuação final. Por isso eu tenho de manter um equilíbrio entre o que gasto e o que ganho. Enquanto é difícil sobrevalorizar uma horta no Agrícola (se cada abóbora dá 1 ponto), no Modern Art sobrevalorizar quadros pode ditar a nossa derrota.

Para mais, é importante que exista uma moeda única, VPs, para que o cerne do jogo se centre no mercado. Caso contrário, o foco é arrastado para uma infraestrutura que não simula as condições flutuantes deste.

O que nos leva à última parte.

Sem Rede de Segurança

"Deve ser desprovido de uma infraestrutura de produção de VPs
alheia à simulação de mercado e moeda única."

O foco intenso no mercado e nas sua flutuações implica que deve ser desprovido de uma forma alternativa de ganhar o jogo que não se apoie em surfar as ondas feitas pelos jogadores. O jogo Económico deve evitar infraestruturas que providenciem VPs sem que o mercado impacte essa infraestrutura, ou sem risco de perder VPs no processo.

Se o objectivo de um jogo for vender abóboras para fazer dinheiro (VPs), então as abóboras em si não podem dar pontos no final, porque isso levaria a um possível ignorar do mercado em prole da produção como forma de ganhar o jogo.

Mais do que isso, é imperativo que essa infraestrutura seja apenas integrada como subjacente ao mercado: se existir um sistema de produção, ele deve servir apenas para criar moeda única, e não para satisfazer objectivos alternativos, como "linha mais longa", "maior número de abóboras", ou "cada edifício vale 2VPs no final". Esses objectivos afastariam a necessidade absoluta de navegar o mercado em benefício de contruirmos o nosso próprio harém de VPs.

Isto leva a um paradigma constante que vejo em jogos com boas simulações de mercado: sistemas de produção, quando existentes, tendem a ser o mais abstraídos possível.

A economia é base, ferramenta, e propósito.


Mixórdia de Mecânicas

Portanto, reiterando outra vez os pensamentos iniciais - isto não é um sim ou sopas. Os jogos não podem ser definidos como isto ou aquilo apenas porque apresentam esta ou aquela categoria. Esses tempos já lá vão. Hoje em dia a maior parte deles cai num gradiente que engloba várias categorias. Quem diz económicos, diz euros, diz ameros (jogos americanos).

Para exemplificar, vamos colocar alguns fan favorites na Pirâmide da Pureza Económica™. Aposto que esta visualização não vai suscitar revoltas nenhumas e toda a gente vai concordar a 100% com isto:


Que tal? Exacto e científico, como seria de esperar.

Quero concentrar-me em 2 jogos: Brass e John Company. Vou analisá-los mediante a sua Economia e assobiar para o lado em relação euro/americidade.

Em Brass Lancashire, o jogador vê um exemplo de um jogo euronómico: um mercado de valores como apoio a uma infraestrutura de produção de VPs. No jogo, procuramos contruir edifícios para ganhar não só VPs como moeda. A infraestrutura base que decide quem ganha é a dessa produção. Esta é um aspecto forte dos ditos jogos europeus.

No entanto, essa infraestrutura é apoiada por dois mercados: o do carvão e ferro, e o mercado do imobiliário - ambos completamente manipulados pelos jogadores, mas o segundo sendo mais abstracto. Parte euro, parte económico. É curioso analisar este equilíbrio ao lado do seu irmão Birmingham que parece muito mais interessado em fazer parte do Espaço Schengen, de tanto que bajula o Euro. Estou a exagerar, mas a introdução da cerveja como um novo puzzle de produção é uma afirmação sobre essa mesma estrutura. No entanto, para seu prazer económico, essa cerveja cria mais uma instância de oferta e procura que evoca a tal simulação de mercado que define o Económico.

Em John Company encontramos um caso particular. É das poucas, senão a única simulação política que alguma vez vi neste hobby. Em John Company interpretamos uma das seis famílias que geria a infame East India Company. O objectivo do jogo é manipularmos os outros a elegerem membros da nossa família para cargos onde estejam bem posicionados para lucrar.

John Company tem muito de fascinante que comentarei num post mais tarde. Agora quero apenas focar-me num aspecto: como o mercado é ditado pelos aspectos euro e pelos aspectos amero.

Em John Company podemos trabalhar para criar capital de várias formas através uma infraestrutura de produção (rotas marítimas, subornos, despojos de guerra, etc). Esse capital não são VPs pelo que se diria que não corresponde a uma das minhas regras. No entanto, o capital continua a exibir as correlações de que falei: no final do jogo é essencial termos trocado o capital por VPs, significando que qualquer gasto que não esse põe em risco a nossa vitória. Ainda está lá a relação mas abstraída. John Company tem muito de euro.

Mas se John Company possui a estrutura de euro para produção de capital, também possui aspectos de amero que perturbam essa estrutura e a economia: o funcionamento da produção depende de sorte nos dados, e a mitigação do azar nestes. Não só isso como os valores de certos recursos são definidos por cartas viradas no início da ronda. A sorte molda quase todas as decisões feitas no jogo. John Company tem muito de amero.

Finalmente, um último pormenor que me faz pensar que John Company seja um Económico primeiro e o resto depois: o dinheiro no jogo pode ser trocado de mãos sem justificação alguma. Posso simplesmente dizer ao António que lhe pago 3 patacas se ele me comprar os barcos a mim, ao que o Zé diz que paga 4 e ainda elege a filha dele para Gerente da República do Mumbai. O que isto quer dizer é que tudo  está para venda Tudo é valor. Tudo é flutuação. Tudo é mercado. John Company tem muito de Económico.

Conclusão

Servem então estas quase duas mil palavras para explicar que é quase poético que "Económico" seja um adjectivo e não um substantivo. Um jogo baseado em economias normalmente tenta apoiar-se em algo que sustente essa economia, e quanto maior e complexo for o jogo mais pertinentes vão ser esses alicerces.

E já que falo de Cole Wehrle, lembro-me de uma coisa que ele disse numa entrevista: "Todos os jogos são jogos de leilão."

No limite desta discussão poderíamos até argumentar que em literalmente todos o jogos a análise risco benefício de tomar uma acção em detrimento de outra, acoplada à restrição de se ter um número limitado de acções por jogo, é em si uma forma de mercado indirecto. Mas isso seria um alongar da conversa e eu já estou a ficar cansado.

Gostaria então apenas de contar um conto e acrescentar um ponto: todos os jogos são jogos económicos .

Só que uns mais que outros.

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