Cyberpunk 2079
Opinião por Gonçalo Martins, do Glitch Gamecast.
Às vezes a vida corre mal por culpa própria! Quando isso acontece, por norma, temos 2 opções; Assumimos o erro, baixamos a cabeça e tentamos de imediato emendar o que de mal foi feito ou escolhemos o caminho mais longo, quase sempre duro, e que na maioria das vezes acaba novamente na primeira opção. Metemos os pés pelas mãos, depois mentimos, outros descobrem, o nosso mundo cai e depois (com ainda maior prejuízo) assumimos o erro, baixamos a cabeça e fazemos emendas.
Em 2012 o estúdio polaco CD Projekt Red, vivendo um estado de graça invejável na industria dos videojogos, anunciava ao mundo o seu novo projecto.
Intitulava-se Cyberpunk 2077.
Depois do gigante sucesso que foi a saga The Witcher, muito à conta do seu 3.º capitulo e que valeu ao estúdio milhares de prémios e milhões de cópias vendidas a expectativa era enorme e muito alimentada. Desde 2013, altura que saiu o primeiro teaser trailer, até ao seu lançamento em 2020 foram trailers, anúncios, podcasts e features que levantavam a ponta do véu e mostravam o aparente desenvolvimento do jogo. Certamente nunca nos iremos esquecer da aparição de Keanu Reeves (aka “a único ser humano no mundo de que todas as pessoas gostam”) na E3 de 2019 anunciando que ele iria participar no jogo. Foi “breathtaking”, não foi?
Ao longo deste período, enquanto Cyberpunk 2077 era vendido e cravado na nossa memória colectiva como se do próximo advento se tratasse, dentro da CDPR o jogo continuava a ser desenvolvido e não estava a correr nada bem.
Os 9 anos em que o jogo esteve em desenvolvimento foram conturbados, com várias mudanças e indecisões em relação à direção que o jogo devia tomar, derrapagens de orçamento e muitas dificuldades de comunicação dentro do estúdio exacerbados pelo pobre desempenho dos elementos decisores dentro do mesmo. Tudo isto em cima do infortúnio que foi o aparecimento da pandemia durante o período mais crítico do desenvolvimento do jogo.
O dia do julgamento foi mesmo o dia em que foi posto à venda, seguindo-se a hecatombe que todos conhecemos. Começando pela ardilosa gestão dos review codes, apenas disponíveis já muito perto da release e apenas para PC (cuja versão era estável e menos afoita a problemas), resguardando assim as versões quer da nova, quer da mais antiga geração apenas e só para a data de lançamento.
O resultado foi o que todos vimos; as versões PS5 e Series X/S crashavam por tudo e também por nada e as mais velhinhas PS4 e Xbox One X ainda mais e quando dava para jogar o motor de jogo quase que explodia com bugs.
A falta de confiança instalou-se, as acções da CDPR caíram a pique, processos entraram em tribunal e a Sony numa acção inédita retira o jogo da sua loja online e oferece-se para reembolsar quem comprou o jogo. Para a CDPR, o fim do mundo tinha chegado.
Foram 2 anos de patches e hotfixes, totalizando cerca de 500GB de informação adicionada para que Cyberpunk 2077 encontrasse a sua paz. Mas faltava algo que virasse novamente a atenção para o jogo e a CDPR, vendo o sucesso que teve com a adaptação para a Netflix de The Witcher (que aquando da sua estreia fez disparar novamente os números do jogo), joga o seu último trunfo.
Cyberpunk: Edgerunners estreou recentemente na Netflix. São 10 episódios onde acompanhamos David Martinez, um miúdo que após a morte da sua mãe tenta sobreviver e fazer nome no submundo de Night City. Uma história cânone mas independente e alheia aos acontecimentos do videojogo.
A série foi e está a ser um sucesso, quer para críticos, quer para o público e rapidamente a atenção voltou-se novamente para o jogo. Desde então Cyberpunk 2077 emergiu das profundezas acompanhado de um aumento enorme de jogadores, uns voltaram a instalar, outros compraram e todos eles tiveram algo que na altura do lançamento não existia, um jogo sólido na sua performance, sem (muitos) bugs nem crashes, podendo assim os mesmos desfrutar do grande jogo que é.
Assistimos a muitas histórias de redenção ao longo da nossa vida e a indústria dos videojogos também tem as suas, não muitas, mas tem.
A mais mediática até esta saga do Cyberpunk 2077 foi No Man’s Sky, da Hello Games, onde claramente o produto apresentado aos consumidores exortava ideias a mais e apresentou concretizações de menos. Um jogo que sofreu com a forma como a Sony geriu o marketing do mesmo, empolando expectativas e falsamente dimensionando e valorizando o jogo quase para um patamar de AAA, sendo o jogo, na sua concepção, um produto indie. Também não nos podemos esquecer que o próprio fundador do estúdio, Sean Murray, não foi propriamente parco em promessas de mundos e fundos sempre que ia aparecendo em acções de promoção do jogo quando o mesmo ainda estava em desenvolvimento. Depois do drama a equipa não baixou os braços, acreditou no produto e 6 anos depois No Man’s Sky é aquilo (e possivelmente até mais) que prometeu.
Cyberpunk 2077 é, neste momento, um figurino da técnica japonesa Kintsugi, uma arte em forma de reparação de cerâmicas que tem como filosofia, não a de colar ou esconder as fissuras das peças partidas mas sim de a dar destaque a essas mesmas falhas. A técnica consiste em adornar as peças utilizando uma resina de pó de ouro com o objectivo de lembrar de que nada na vida é perfeito e as nossas falhas não devem ser objecto de vergonha ou embaraço, devem ser sim, motivo de evolução, resiliência e aspiração a ser algo ou alguém melhor.
A CD Projekt Red tem agora nas suas mãos um jogo que é perfeito na sua imperfeição. Algo que tinha grande potencial no seu estado embrionário, não brilhou no dia em que foi mostrado e seguidamente rejeitado pelo mundo mas que ao permanecer escondido na neblina da fracasso, ao aproveitar o esquecimento que do tempo oferece e do acreditar dos seus criadores é agora algo capaz de permanecer no olimpo dos videojogos. Nunca será consensual, essa é uma verdade, mas será sempre omnipresente independentemente do olhar apreciativo e da perspectiva que quisermos dar a todos estes acontecimentos.
É uma história de humildade desnecessariamente aprendida à força, mas de necessária importância que servirá para todas as personagens que coabitam nesta, tão sui generis, indústria dos videojogos, observarem e não só tirarem ilações mas também acreditarem que a redenção é para todos… quando se trabalha para a merecer.