Artigo escrito por Marco Silva .
Há muitas centenas de anos, 2 naves com nome Zenith e Nadir partem da Terra em direção à distante estrela Aldebaran com o objetivo de colonizar esse sistema solar. Após uma muito longa viagem pelo espaço profundo, na qual Nadir é perdida no espaço, Zenith chega ao seu destino. Para surpresa da sua tripulação, quando chegam ao sistema solar Aldebaran, descobrem que os planetas já se encontravam colonizados por descendentes humanos, e que viajaram para este sistema vindos da Terra a partir de um sistema de portais que os habitantes da Terra encontraram anos depois da partida das naves. Neste tempo de viagem, estes colonos estabeleceram-se nestes planetas e iniciaram um conflito que durou vários anos ao qual se chamou a guerra dos portais, momento em que a fação separatista que pretendia a independência dos planetas originais do Primeiro Horizonte (First Horizon) destrói os portais que ligam o Terceiro Horizonte (Third Horizon) aos restantes, ficando o Third Horizon isolado no espaço.
É assim o Coriolis The Third Horizon, um RPG altamente inspirado no Médio Oriente e na sua mitologia, até se auto-classifica como a fusão entre o tema do espaço e o Alibaba e os 40 Ladrões. Este é mais um premiado jogo criado pela editora Free League, que readapta para este jogo as mecânicas de outro jogo muito aclamado e premiado, o Mutant: Year Zero.
Este jogo é sem duvida uma obra prima, principalmente para amantes de Sci-Fi e séries como The Expanse e ou a mais clássica Firefly. Em Coriolis, vestimos a pele de uma tripulação de uma nave espacial que navega este mundo dividido do Third Horizon a cumprir missões e a sua própria agenda. Eu sou um enorme fã de The Expanse e digo-vos que com um bom Game Master, este jogo vai parecer que estamos a bordo da Rocinante com os amigos a fazer decisões nossas e a tornar o mundo nosso.
O Ambiente e o Universo
Uma das coisas mais incríveis neste jogo é o nível de detalhe e riqueza do universo que foi criado. Todos os elementos de cultura, espaços criados e background story de cada uma das fações. O Core Rulebook é composto por 386 páginas, carregadas de detalhes e ilustrações incríveis.
Uma das principais zonas que ficou estabelecida neste universo é a gigante estação espacial Coriolis, que é estabelecida a partir das peças da nave espacial Zenith que, ao chegar parte da sua tripulação, decide transformar a sua nave nesta estação gigante e posicionar a mesma no centro deste sistema. Esta estação estabelece-se como uma zona neutra e de negociação e diplomacia entre as diferentes fações que compõem este sistema. Um ponto que me fez lembrar imenso a série Deep Space Nine do universo de Star Trek. O rulebook dedica um longo capítulo a descrever em detalhe esta estação para que, caso os jogadores assim desejem, um Game Master (GM) consiga criar uma campanha inteira que acontece dentro desta estação.
Um outro ponto muito bem descrito são todas as fações que compõem este universo. São 10 no total e, enquanto que a maioria faz parte do concelho que delibera em Coriolis, nem todas têm um lugar nesse mesmo concelho. Um pouco como seria de esperar, cada fação vem muito bem descrita com história, características e muitas delas até religião. Existe sem dúvida uma inspiração muito forte na cultura do médio oriente, tanto do ponto de vista de criação do contexto das fações e história das mesmas, mas também na arte do livro e nos magníficos cenários que estão retratados nas imagens que partilho aqui neste artigo e que compõem o livro.
O universo é mesmo vasto, com 36 sistemas solares a explorar, todos ligados pelos portais que compõem o Third Horizon e em que os jogadores podem escolher navegar usando a sua nave espacial recorrendo ao sistema de portais, que estão altamente guardados e que requerem muito cuidado na sua utilização, pois os gatekeepers são os únicos que são capazes de fazer os cálculos necessários para usar os portais em segurança. Para usar os portais, os jogadores têm de pagar uma avultada quantia aos gatekeepers, ou juntar-se legitimamente ou clandestinamente a outras naves que vão fazer a viagem, ou também podem escolher fazer os cálculos sozinhos, o que é muito arriscado e pode levar à morte de toda a tripulação. Esta mecânica enriquece a aventura de forma natural e é muito o espírito do universo, de criar este ambiente de aventura, desafio e ação constante no jogo.
A Criação da Personagem
A criação de personagens é altamente completa e com imensa liberdade nas combinações que cada jogador faz. É realmente muito bom para quem gosta de customizar bastante as personagens, e como não é um jogo em que morrer seja fácil, vale a pena o investimento.
Ao criar uma personagem, à parte do normal nome, background e aparência a que estamos habituados a pensar, em Coriolis podemos escolher também:
- A nossa humanidade (que no fundo é que raça de humanos somos), sendo que existem 3 possíveis (Sirb, Xinghurm, Nerid) e claro o humano normal (sangue puro). Dependendo do background que escolhemos e onde nascemos, teremos uma destas raças.
- A nossa Classe, que no fundo é a profissão que escolhemos, o que decidimos fazer com a nossa vida. Existem 11 diferentes e muito interessantes, desde profissões boas para a nave como piloto, engenheiro de bordo, ou soldado, e outras mais peculiares como artista, data spider, padre...
- O valor dos nossos atributos, que neste jogo são apenas 4, Força, Agilidade, Inteligência e Empatia.
- Temos também skills como é o caso de Destreza, Manipulação, combate corpo a corpo, etc... Estas skills estão associadas a atributos para depois se calcular o sucesso ou insucesso de uma tentativa de algo no jogo.
Consoante as decisões de sistema de origem, raça, etc... o jogador terá um conjunto de pontos de habilidade, skill, e até de reputação e dinheiro com que começa, bem como um conjunto de atributos e skills já de base.
Os jogadores são até convidados a escolher qual o Icon que eles adoram e têm de escolher qual a função que desempenham na nave.
Os jogadores também têm de escolher vários talentos, um que partilham como equipa (talento de grupo), um talento que é pessoal, o talento que advém da escolha do Icon e, caso o jogador não seja puro humano, ainda tem direito a um talento adicional da sua raça. Os talentos ajudam o jogador durante o jogo, seja a recuperar de dano e situações difíceis, como de realizar tarefas durante o jogo que mais ninguém consegue fazer.
Finalmente, as armas, o equipamento, a roupa, etc, tudo está descrito e ilustrado em dezenas de páginas do livro, com inúmeras possibilidades e combinações possíveis.
A Personalização da Nave
As possibilidades de customização da Nave dos jogadores são imensas, e facilmente uma equipa de jogadores que goste muito desta componente criativa investe uma sessão de jogo inteira só a customizar a nave inicialmente. A experiência é tão rica como a de criação de uma personagem, apenas neste caso é colaborativa pois a nave é de toda a equipa. Um GM pode decidir ter um conjunto de naves já criadas para acelerar esta parte do processo, mas acho que se a equipa realmente gostar então pode e deve ter esta parte da experiência.
Dependendo da classe que é escolhida, os atributos base da nave ficam determinados, e segue-se a fase de adicionar armas, itens, módulos e tudo mais que a irá tornar a casa dos nossos heróis nesta aventura. Existem apenas 5 classes, que vão desde um pequeno fighter a um completo battlecruiser.
Com a classe escolhida, o próximo passo é escolher os módulos que compõem esta nave. Existem 17 possíveis módulos opcionais e 3 obrigatórios (a ponte, reactor, e o Graviton Projector) e, dependendo da nave, podemos colocar mais ou menos destes módulos, podendo como é evidente repetir quantos módulos quisermos.
Depois, temos a fase de selecionar armas, e existem mais de 20 armas possíveis, cada uma com a sua própria ilustração e tabela de funcionalidades para podermos escolher e customizar.
Mas o pormenor mais interessante é mesmo um que podem decidir colocar no final. Após toda esta customização, sentem mesmo que a nave é como um jogador, e podem até escolher se querem que a nave se torne num NPC falante e interativo no jogo, ao adicionar-lhe uma Inteligência Artificial falante como uma das funcionalidades. Assim, podem comunicar com a Nave durante o jogo, e ela passa também a ter uma personalidade e a acompanhar os jogadores para todo o lado nas aventuras.
As Mecânicas Principais
Coriolis segue uma mecânica de jogo muito simples, baseada em D6 Dice Pools. No fundo, em cada momento em que temos de testar para uma ação ser ou não tomada (seja em combate ou em exploração do mundo), o jogador simplesmente tem que entender que atributo é impactado (e possivelmente skill também) e somar os valores da skill + atributo para determinar o número de dados a rolar. Depois, é rolar os dados e contar o número de sucessos (que são determinados pela face 6 do dado). Caso consiga ter 3 sucessos, considera-se um critical success.
Adicionalmente, existe a mecânica dos Darkness Points, que cria uma dinâmica muito interessante no jogo. A qualquer momento, um jogador pode voltar a rolar qualquer dado que não seja um sucesso. Este fenómeno de voltar a rolar é explicado por um jogador rezar ao seu Icon para obter ajuda. Sempre que um jogador decide fazer isso, dá um Darkness Point ao GM, que pode gastá-los no futuro para alterar algo no mundo/história, normalmente para criar um novo desafio e nunca numa altura boa. É uma forma divertida e integrada do GM conseguir continuar a controlar a história e a manter a "sorte equilibrada".
As batalhas não são só das personagens em combates normais. Como este jogo se passa muito no espaço, existem também muitas batalhas que são travadas entre naves no espaço. É aqui que a decisão inicial de qual a função que cada personagem desempenha no jogo é importante. No fundo, os combates são divididos em 5 fases, cada uma correspondente a um dos trabalhos que os membros da tripulação desempenham. Assim, é muito mais ordenado e simples acompanhar o combate entre naves. Os combates entre naves têm em conta a distância entre as naves e as capacidades de manobrar, alcance de armas, etc... No livro existe um pequeno mapa para ser usado como arena de combate para que seja mais fácil medir as distâncias entre as naves.
São batalhas frenéticas e cheias de emoção e muita diversão.
Notas Finais
Isto é sem dúvida uma obra prima e um Must para quem gosta de Ficção Científica e RPGs. A forma incrivelmente detalhada como o mundo está descrito torna muito simples entrar no jogo e imaginar as personagens e as situações. Para quem é GM também é muito simples criar aventuras neste mundo, uma vez que as descrições são mesmo muito completas, e já existem situações de intrigas entre fações, espaços para explorar e motivações para conflito suficientes para a dificuldade ser mais em escolher o que ativar do que inventar coisas para preencher uma situação.
O sistema de combate, seja no espaço com a nave seja em terra, é simples e partilha da mecânica das Dice Pools. Apesar de ser um jogo complexo, não sinto que seja demasiado complexo, e é um bom jogo para quem já gosta do género. Não acho que seja um bom jogo de entrada, pois tem criações de personagens muito complexas, mas por outro lado, se guiado por um bom GM, este jogo tem a capacidade de trazer mais malta para o hobby, porque facilmente se entra na mecânica se alguém já souber jogar.
Desde a arte incrível, a escrita muito boa e clara, ao mundo vasto e cheio de potencial, Coriolis é sem dúvida um Must Play para qualquer amante de RPG.