O Curioso Caso da Amizade na Especulação Imobiliária
Artigo escrito por Francisco Maia.
The Estates. Esta reedição do velhinho Neue Heimat põe capacetes amarelos aos jogadores e pede-lhes que construam os edifícios de um quarteirão na cidade. Durante um turno, o jogador pode pôr a leilão qualquer peça do jogo (edifícios, licenças de expansão, telhados, etc.) e o vencedor desse leilão é que decide onde é que a peça é posta. Quando uma certa cor de edifício é colocada no tabuleiro pela primeira vez, esse jogador assume responsabilidade pela empresa que o colocou (basicamente, ganha ou perde pontos mediante a performance dessa cor durante o jogo). Portanto, a reter: primeiro a colocar uma peça de uma certa cor, torna-se o jogador dessa cor.
Mas os prédios não se constroem sozinhos, claro. Anda tudo a tentar ganhar pontos na mesma fileira de edifícios, portanto acaba por se desenvolver uma colaboração fenomenal entre jogadores para construírem o melhor quarteirão possível, cheio de prédios vibrantes. É de salientar que a economia do jogo é completamente fechada, ou seja, o jogo começa com 12 cheques por pessoa (o dinheiro com que ganhamos leilões) e mais nenhum dinheiro entra no jogo até ao final. Os jogadores é que se pagam uns aos outros pelos leilões. Contudo, é possível algum dinheiro ser retirado do jogo, tornando a economia ainda mais apertada para todos.
Mas se pensam que isso quer dizer que o jogo é cooperativo, tirem daí a ideia. A verdade é que ainda não expliquei a pequenina regra que faz com que o jogo vá de Bom a Muito Bom: é que só a côr do último andar de um prédio é que marca pontos. Não só isso, essa cor marca pontos por todos os andares que estejam debaixo de si, seja de que cor forem. Portanto o Zé está todo contente a construir a sua torre de 8 pontos, chega a Beatriz e espeta-lhe uma penthouse de 4 pontos em cima. E agora a Beatriz tem 12 pontos. E como se não chegasse, ainda pode duplicar essa pontuação se estiver na fila privilegiada pelo Presidente da Junta (cuja ...'amizade'... também se pode ganhar em leilão: realismo 10/10). Portanto, a Beatriz pode estar a ganhar 24 pontos à pála do Zé, tendo colocado apenas um cubo de 4 pontos.
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Mas ainda não expliquei a pequenina regra que faz com que o jogo vá de Muito Bom a F***-se, Preciso de Uma Cópia Para Mim, Já!: é que só pontuam as primeiras duas filas de edifícios no quarteirão a serem completadas. A última, a incompleta, marca PONTOS NEGATIVOS! Quer sejam duplicados ou não!! Se a Beatriz não conseguir fechar a fila, aqueles 24 pontos serão NEGATIVOS! O Zé até lambe as beiças…
É que não se esqueçam que coloca o bloco no tabuleiro a pessoa que ganhar o leilão… quer seja a pessoa que mais lucra com isso ou não!
Avaliação D.I.C.E.
Dinâmica
A meu ver, a melhor forma de explicar este jogo é chamá-lo de Anti-Jogo, O Jogo. A maior parte do tempo vai ser passada tanto a destruir o jogo dos outros como a construir o nosso império com cuidado para que não seja facilmente destruído. E eu sei o que estão a dizer: “Ah, pena. Não é para mim. A Rute odeia que lhe batam nos jogos e o Artur só quer ficar quietinho no seu canto a fazer a sua cena”. Não vou mentir: este não é um jogo fácil de vender aos familiares. Por isso é que eu não vendo. Sento-os e digo que vamos jogar um jogo, depois deixo-os descobrir a malícia do jogo por eles próprios. E acreditem que eles descobrem sempre. Ainda não tive uma pessoa a jogar o jogo que não gostasse muito dele, quer fossem eurogamers, solo players, ameritrashers, o que quiserem. Até agora o jogo teve uma taxa de 100% sucesso. É sempre o jogo mais divertido da noite para toda a gente.
Mas como nenhum jogo podia existir sem falhas, padece daquela velhinha doença dos jogos económicos: como em qualquer jogo de alta interação em que dinheiro troca de mãos, o equilíbrio do jogo está dependente dos jogadores. Vamos dizer que o Zé paga demais à Beatriz num leilão. Depois a Rute paga demais à Beatriz num leilão. Depois o Artur paga demais à Beatriz num leilão…. na quarta ronda a Beatriz está cheia de guita e pode fazer o que quiser pelo dinheiro que quiser porque os outros são pobres.
Tão a ver a cena? É preciso que os jogadores saibam quanto valem as coisas e a quem se pode pagar a certa altura do campeonato. É muito fácil ter um jogador estar a trabalhar de graça para outro, simplesmente por não ter noção do estrago que está a causar ao balanço.
Agora, só para contrapor, isto acontece ocasionalmente e só uma vez. Quando os jogadores veem isto a acontecer, deixam de o fazer em jogatanas futuras. Mais, já joguei com muitos grupos para quem o balanço do jogo não era importante e só queriam galhofa, que o jogo entregou em barda.
Integração Temática
Não sei bem o que dizer aqui. Ou o jogo tem absolutamente zero integração temática porque o mundo do empreendedorismo não é feito de leilões onde até o Presidente da Junta está à venda, ou, com um bocadinho de imaginação, o jogo tem a máxima integração temática porque o mundo é efetivamente feito de leilões onde até o Presidente da Junta está à venda. Preciso que venha um engenheiro ou imobiliário tirar aqui as teimas.
Uma coisa que digo pelo tema é que, representa muito bem a dor de não ter guita nos bolsos e ver os outros a lambuzarem-se com tanta propriedade barata.
Complexidade
O jogo faz parte de uma linha de jogos chamada de SimplyComplex, e é o que pretende ser: um jogo complexo com o mínimo de regras possível. Vejo nisto um salva-vidas natalício. É honestamente um jogo que podemos levar à mesa com a família sem termos de nos preocupar com explicar as regras trezentas vezes ou ver burros a olhar para palácios. No entanto, há muuuito para pensar neste jogo. É que o gameplay emerge das interações dos jogadores, não do tabuleiro. No fundo as regras são isto: no teu turno põe uma coisa a leilão, quem ganhar coloca-a no tabuleiro.
Existe no entanto uma certa complexidade na estratégia. É severamente opaco, na medida em que para alguém que jogou pouco ou nunca jogou é muito difícil de perceber o que vai acontecer nas próximas rondas. No entanto já vi dois tipos de atitude a essa opacidade: ou fritam a batata porque estão habituados ao controlo máximo dos seus turnos, ou deixam-se logo ir pela caótica maré financeira do jogo.
Penso que já se esteja a tornar um facto do hobby que as produções Capstone Games estão num patamar superior aos comuns jogos mortais. Os ingredientes do costume são de excelente qualidade mas aqueles blocos que compõem os edifícios são fenomenais. Para além de sólidos e dar gozo manuseá-los durante o jogo, os blocos estão assinalados de forma a serem acessíveis a jogadores com daltonismo.
Também gosto bastante do ar vibrante que o jogo tem porque, parecendo que não, aligeira o que podia ser um jogo muito maldoso. Ninguém olha para um conjunto de cubinhos empilhados que mais parece saído da Chicco ou da Playschool e pensa "ah ya, tenho de ganhar isto como se a vida dependesse disso". A silliness do aspeto mantém os pés na terra.
Considerações Finais
Eu adoro ser mau. Pá, não sei o que é: adoro a sensação de trair alguém num jogo, adoro a sensação de ser traído. Adoro a sensação de esmagar os sonhos e ambições da Beatriz que tá toda fanfarrona. Isto na desportiva, claro. Este é o jogo para mim. A maldade só causa risadas no jogo e toda a gente está a tentar ser pior que o outro. Já vi pessoas a ganhar o jogo porque enquanto as cobras se entretinham umas com as outras, a Beatriz foi calculando o seu império devagarinho e caladinha. Mas a coisa que eu mais gosto neste jogo é que é possível ganhar com 0 pontos.
Se, como eu, a ideia de um levantamento de todas as leis da cortesia da amizade vos apela, então este é o jogo para vocês. E de uma forma quase para dóxica ao que digo, não tenho uma única memória de o jogar que não tenha sido um verdadeiro momento de bem-estar na companhia de amigos e família.