Metaphor: ReFantazio


Não é todos os anos que a Atlus nos apresenta um RPG totalmente novo que não cai numa das suas inúmeras séries, de Shin Megami Tensei (chamado de MegaTen pelos fãs) a Etrian Odyssey, passando pelos inconfundíveis Persona. Este ano tivemos Unicorn Overlord, que sinto ser uma coisa à parte porque a Vanillaware tem (para mim) um pedestal próprio. Para mim Atlus significa MegaTen e Persona, por isso quando me preparava para o lançamento de Metaphor: ReFantazio a minha excitação estava cada vez mais descontrolada. E digo recentemente, sim.


Recentemente, pois tudo começa em 2017 quando surge Studio Zero, o então novo estúdio da Atlus que, nas mãos de Katsura Hashino (que trabalhou nos jogos já referidos) estreava-se com o high-fantasy RPG “PROJECT Re FANTASY”. Digamos que a minha reação ao trailer oficial foi um pouco… horrível, um teaser que podem ver aqui também. Este parecia um vídeo questionável de uma viagem medieval com pessoas disfarçadas a rigor, que falava em feitiçaria, lords e uma guerra onde do nada é colado ali o “nosso mundo real”, com mensagens utópicas de uma realidade perfeita. Não sabia bem o que estava a ver e tinha medo, deixando-me inquieto porque após Persona 5 queria mais experiências assim, incríveis, e reajo com um “oooooh, isto já estava ali!”, reação bem distinta da primeira.

Com o passar do tempo esqueci-me desse vídeo bizarro, contudo em 2023 surgia de surpresa o primeiro trailer a revelar oficialmente Metaphor: ReFantazio, lembrando-me então desse anúncio agora longínquo. Toda a minha reação negativa ao título passou imediatamente a ser dos jogos mais aguardados por mim. “MegaTen com elementos de Persona? Um Persona medieval? Preciso!”, mudando completamente as minhas expectativas para este novo RPG da Atlus. Ver aqui um jogo totalmente novo, a beber o melhor que a empresa e os seus estúdios criaram, um sistema de combate para me viciar era tudo o que pedia… Agora que o completei, passo então a ver se cumpriu com as minhas expectativas!


O pano de fundo é o Reino Unido de Euchronia, “unido” apenas em nome, pois a discórdia, disputas raciais e ideológicas são uma constante entre todas as localidades da região. No coração do reino temos Grand Trad, uma enorme capital adornada de aparatosos edifícios clássicos, como se estivéssemos a percorrer Paris. Uma cidade populada por distintas raças (ou melhor, tribos) que partilham o seu quotidiano com muitos outros, sendo que a aparente harmonia a que somos expostos ao início rapidamente parece que se torna ficção. A ordem de Grand Trad e o seu o reino envolvente está em causa, o assassinato do Rei gerou uma onda de incerteza entre os habitantes, pois o sucessor da coroa era incerto. No meio de tudo surge o nosso protagonista e a fada Gallica, ambos com a missão de salvar o príncipe e herdeiro legítimo do reino que, embora dado como morto, encontra-se sobre uma maldição que temos de quebrar.

Aqui reina também uma desigualdade bem visível: todos os habitantes são vistos pela sua tribo, onde no topo encontramos os Clemar, raça humanoide com cornos e, no fundo da hierarquia temos os Elda, os humanos lá do sítio, que partilham a sua insignificância com todos aqueles que nasceram da mistura de tribos. Temos as que se parecem com elfos de orelhas farfalhudas, elfos mais discretos que primam pela beleza, outros humanoides (quase alienígenas) com asas de pássaro, os Eugief que são morcegos autênticos e ainda os Paripus, animais antropomórficos com orelhas de cão (e não só) extremamente discriminados em todo o lado. Existe uma grande diversidade entre raças o que foi uma lufada de ar fresco quando comparando com MegaTen ou Persona, encaixando num estilo de fantasia habitual em muitos RPGs, mas que a Atlus parecia estar tímida a explorar essa temática num jogo desta envergadura.


Há também uma forte desigualdade a nível ideológico, inserido no espírito bem medieval que o jogo nos traz. Temos a Sanctist Church, religião que desde sempre está presente no reino, cujo líder Forden vê na morte do Rei a oportunidade de usurpar o trono, tentando usar a sua influência para a sua vantagem. Surge também Louis, um militar nato com um forte suporte da população, aquele que dá o rosto a um antagonista “a sério” no jogo que quer criar a ordem através do caos e da força, eliminando a todo o custo aqueles que se opuserem à sua visão de uma sociedade idílica. Tal como o protagonista eu caía assim no meio de tudo, com a missão bem assente na memória, não fossem as cutscenes relembrarem-me bem disso, sendo que o objetivo é claro: matar quem lançou a maldição, cuja autoria é dada a Louis. E digo já, logo na primeira vez que vemos a presença de Louis no ecrã, o seu estilo grita “vilão RPG” por todo o lado e o jogo não tem qualquer problema em o apresentar como tal. Apesar disto, o mundo aqui representado não é propriamente um preto e branco, existindo dilemas morais e questões sociais por todo o lado difíceis de resolver. 

Os perigos que habitam na cidade vão além das muralhas da mesma, que não estão ali só para decorar. Pelo mundo fora há o grande perigo dos humanos (sim, é o nome deles), criaturas enormes e extremamente bizarras com instintos primitivos que matam sem lógica, dificultando a propagação dos habitantes pelo reino. Um perigo frequente, mas não comum, sendo que por vezes nos esquecemos da existência destas criaturas até nos aparecem pela frente nos combates, quando apareciam. É claro que a partir do momento que nos falam destes humanos não conseguimos deixar de estranhar a escolha do nome, mas isso é apenas uma das muitas surpresas que o jogo tem pela frente que, embora não seja propriamente inesperada, convido muito a evitar spoilers do jogo para usufruírem ao máximo da sua história.


Não seria um bom RPG à Atlus se não acontecesse algo… absurdo, e isso surge logo no início da aventura com a cara do falecido Rei a surgir nos céus, sob a forma de uma ilha flutuante com o castelo no centro, transmitindo uma mensagem: o herdeiro da coroa será decidido pela sua influência entre as pessoas, pelos seus atos e o quão é visto como ideal para reinar. Praticamente qualquer um podia ser candidato, mas rapidamente surge ali um conjunto de personagens a lutar pela coroa, estas que se destacam da multidão neste concurso de popularidade e, como seria de esperar, o nosso protagonista é um deles. Claro que sendo um Elda fomos rapidamente olhados de lado e com bastante desprezo, mas, também não seria um RPG tradicional se não fossemos o underdog lá do sítio. Calha dos astros se alinharam e a nossa missão pôde tirar partido deste evento. Iniciava assim a minha grande aventura já com um bom par de horas registadas!

Até então tudo perfeito, o jogo apresenta-se como algo bem diferente e, em simultâneo, extremamente familiar para quem é fã de tudo o que vem da Atlus. Via ali as influências claras de Shin Megami Tensei, com uma narrativa mais pesada num mundo de fantasia distinto, mas em muito parecido com a nossa história, tal como os nomes bem familiares de algumas magias (e itens) que há muito conheço. Nota-se muito bem a inspiração em Persona, seja pelos aspetos sociais onde desenvolvemos laços de amizade com um conjunto de personagens, seja pelo calendário que nos dá uma deadline até quando tempos de cumprir certos objetivos. Muita coisa familiar, mas… não exatamente igual, pois o resultado é mesmo um produto diferente com mérito muito próprio!


Sim, há Social Links como em Persona, aqui chamados de Followers, mas estes são bem mais tranquilos. Não tive qualquer medo em dar respostas menos boas quando me perguntavam alguma coisa, pois a única consequência é receber menos pontos de Mag (uma espécie de “moeda” usada para algumas coisas) e não pontos numa barra invisível de relacionamento. Sim, há também um calendário que me dizia “tens de acabar a dungeon até dia X, senão game over”, ainda assim senti que este era muito artificial, havendo dias em que nada acontece porque a história assim o definia.

Existem inspirações que são bem mais que isso, como os Social Stats cá do sítio denominados de Royal Virtues, que em vez de atributos como Knowledge ou Charm, traz-nos coisas como Courage, Wisdom ou Imagination. É praticamente a mesma coisa com outros nomes e, à semelhança de Persona, são necessárias para desbloquear coisas secundárias no decorrer da história. Elementos bem familiares, que parecem ter sido moldados para um jogador com uma vida adulta bem ocupada, pois em ponto algum precisei de farmar a investir tanto nos Followers como nos Royal Virtues, tendo acabado o jogo com ambas as coisas completas sem qualquer dificuldade, ou ter de criar um diagrama mental do que fazer em que dias específicos. Também não há qualquer opção de romance, por isso nada de dias dedicados a encontros amorosos com a personagem que mais adoramos.

A partir de determinado ponto desbloqueamos o nosso grande veículo, uma espécie de amálgama de maquinaria com organismos vivos com um toque de Evangelion, que nos ajuda a percorrer o grande mapa de Euchronia. Aqui os dias passavam a correr e o número de atividades era bem limitada, sem grande pressão, o jogo parecia querer-me levar suavemente a seguir a história sem grandes distrações, como se percebesse que tenho uma vida atarefada, se bem que acabei por depositar uma grande quantidade de dezenas de horas nesta aventura. Geralmente passava os dias no jogo a correr, avançava com a história de cada um dos Followers, até porque são vários e com missões associadas, mas o que mais queria destas interações era efetivamente conhecer melhor o que motivava cada uma das personagens.


Aqui contamos com um incrível leque de personagens, principalmente as jogáveis, que trazem consigo um propósito para partilharem a caminhada connosco, sendo que não consegui decidir ainda quem é a minha favorita. Mais do que um grupo de amigos como estou habituado a ter em Persona, aqui encontrei um excelente sentido de camaradagem em Strohl, um descendente de lords que perdeu tudo num ataque, na guerreira Hulkenberg cujo passado está fortemente ligado ao nosso ou ainda Heismay, um pequeno (grande) Eugief que podia bem ser a mascote do jogo, mas não é, entre os restantes elementos que não são menos importantes, mas quero que os descubram vocês mesmo. É uma equipa que vai crescendo connosco, no meio de outras personagens não jogáveis com um potencial tremendo para o serem, mas quem sabe se numa futura reedição não serão incluídas, isto já conhecendo bem a Atlus e os seus relançamentos frequentes. Numa nota, embora tenha optado por jogar com vozes principalmente em japonês, o trabalho feito pela equipa de vozes inglesas foi todo ele fantástico!

É através destes Followers, onde se incluem personagens jogáveis que surge talvez das maiores diferenças que Metaphor: ReFantazio tem perante MegaTen e Persona. Cada laço criado debloqueia um Archetype, uma invocação mágica que nos ajuda nos combates, tornando-nos ultra poderosos, mas não funcionam com base de "colecionar" demónios, o que até tenho pena, pois é das coisas que mais adoro em MegaTen e Persona. Certo, temos uns gigantes que são invocados quando a nossa personagem vai usar algum ataque especial, mas estes Archetype funcionam como um sistema de classes, trazendo consigo todo um conjunto de ataques, magias e habilidades específicas de cada para explorar, de modo a criar a configuração de equipa perfeita. Aproxima-se mais de um Final Fantasy V do que um Persona, por exemplo, pois à medida que aprendia os ataques podia equipá-los noutros Archetypes, criando assim toda uma panóplia de configurações praticamente infinitas.

Ao escolher o Archetype cada personagem não só equipa a arma que lhe é associada, como os seus atributos mudam de acordo: usando Mage temos mais pontos na inteligência, enquanto que Warrior é vocacionado para um ataque físico e um Gunner usa ataques de longo alcance. Há uma grande diversidade nos ataques e habilidades que cada um aprende, mais do que estou habituado a ver nos restantes jogos da Atlus e, com vários Archetypes a desbloquear acabei por ganhar o vício de subir o nível deles todos, pois cada um tem o seu próprio nível. Inicialmente pensei que iria reagir mal a este sistema, pois adoro mesmo, mesmo colecionar os demónios, mas esta nova abordagem funciona tão bem que agora quero vê-la a ser aplicada em mais jogos da Atlus.


Até porque há um bom potencial uso de estratégia dos combates, aproxima-se de MegaTen onde aproveitar as fraquezas dá-nos turnos extra, enquanto que erros nos penalizam, não bastando tirar partido dos ataques mais fortes. Dei por mim a explorar várias estratégias, a mover as personagens para a dianteira ou traseira do combate, de modo a ter a melhor performance possível em combate. Senti um gozo tremendo a explorar a dificuldade do jogo, estando constantemente a alternar entre o modo de dificuldade Hard e Normal dependendo se estava ou não preso numa masmorra. Não que seja um jogo difícil, até é bastante acessível, mas por vezes surgiam ali inimigos onde a curva de dificuldade dava ali um salto considerável.

É isto que me fez apaixonar tanto por MegaTen como Persona, que têm ainda hoje o meu sistema de combates por turnos favorito, onde não é simplesmente ficar à espera da nossa vez para atacar. Metaphor: ReFantazio trouxe-me algo de volta num ano que recebemos tanto Persona 3 Reload como Shin Megami Tensei V Vengeance, sendo talvez dos anos em que os fãs da Atlus (e mesmo SEGA) melhor estiveram servidos, sendo que este jogo foi, para mim, o que se destacou. Mesmo já tendo-o terminado voltei ao início munido com tudo e mais alguma coisa, para jogar no modo de dificuldade Regicide que tem potencial para ser impiedoso, isso ou talvez seja a minha desculpa para não querer encostar já o jogo.


Porque tudo nele é incrível! A banda sonora é fantástica, diferente, a música de combate genérica conta com coros que nos berram aos ouvidos, de uma epicidade tal que supera as próprias músicas de combates contra bosses. Os cenários são detalhados, mesmo quando o motor do jogo já se apresenta ser datado, a direção artística compensa através de detalhes que parecem pinturas, acompanhando bem as ilustrações das personagens e as sequências de animação. À boa imagem que a Atlus parece estar a criar em Persona e agora aqui, todos os menus e interfaces do jogo vão além do que é expectável, tudo é belissimamente ilustrado onde o simples ecrã de passagem de dia parece exagerado. Se há palavra que me ficou na cabeça enquanto via todo este festim visual, tal como a banda sonora e outros elementos, é que parece ser tudo… extra!

Atenção, que nem tudo no jogo é perfeito… Houve coisas que me chatearam, temos a cidade de Grand Trad a explorar, perdendo-nos pelas suas apertadas ruas, mas outras cidades do jogo são banais. O pior são os locais represetados por simples uma imagem quase estática, que navegamos por um menu para aceder a lojas ou falar com uma amostra dos residentes. Há ainda masmorras ou torres opcionais a visitar, mas são praticamente iguais (para não dizer exatamente iguais) que pareciam feitos à pressão, juntamente com uma perca diversidade de monstros que enfrentamos. Ainda assim não conseguiram arruinar a minha experiência, num jogo com tanto a explorar e masmorras bastante diferentes e boa exploração, recheadas de segredos e desafios. Os designs de personagens, monstros e Archetypes são tão bons que só me fazem querer mais deles, ficando ansioso por ver o que poderá sair numa possível sequela ou sucessor!


No meio disto tudo há ainda a mensagem que o jogo passa, que entre alguns pontos que podem ser considerados spoilers… digamos que por várias vezes o jogo parece dirigido a pessoas como eu, adultos que cresceram com o género RPG ou de aventura que têm agora uma vida preenchida, que ansiamos por aquele breve momento para relaxar e usufruir de alguma paz, dedicada a jogar, mesmo que de seguida a nos decidem pregar uma rasteira. Não é por acaso que Ansiedade é um dos estados especiais que nos dificultam o combate, por exemplo, que por falar nisso é curioso que ícone desse status é inspirado no “O Grito” de Munch. São muitas as referências ao nosso mundo, descrito no jogo como uma fantasia num curioso livro que nos acompanha a aventura desde o seu início, um mundo perfeito onde só existe uma tribo. Há uma grande inspiração no período renascentista, como por exemplo a forte inspiração nas obras de Hieronymus Bosch, que recomendo verem com atenção a sua obra "O Jardim das Delícias Terrenas" assim que terminarem o jogo.

Tudo isto que nos chega através de um grupo de pessoas com um talento incrível que se reuniram neste projeto! Além de Katsura Hashino que mostrou, mais uma vez, que sabe trazer excelentes RPGs a um mercado que por várias vezes já pareceu enterrar os jogos ao estilo mais tradicional, soube incluir no projeto Shoji Meguro e a sua mestria a criar bandas sonoras memoráveis, Shigenori Soegima com a sua arte e personagens, juntamente com Yuji Himukai (de Etrian Odyssey), Kazuma Koda (NieR: Automata) e, talvez das minhas presenças favoritas neste jogo, Ikuto Yamashita que trouxe o seu trabalho feito na série Evangelion a Metaphor: ReFantazio. Juntamente com o resto da equipa do Studio Zero tivemos aqui uma obra incrível, que gostaria de ver regressar no futuro.


Podia estender-me mais, muito mais, sinto que há palavras por dizer sobre Metaphor: ReFantazio que me escapam, neste que se tornou o meu jogo do ano até ao momento e, também, um dos melhores RPGs que joguei nos últimos anos. Sei que não o vou largar tão cedo, há muito que quero falar, apenas não o faço porque são spoilers gritantes, mas no meio de tantas sensações causadas pela história, as suas personagens e o desenrolar da aventura, este entra facilmente na lista dos RPGs que considero obrigatórios!


Nota: Análise efetuada com base em código final do jogo para Xbox Series, gentilmente cedido pela Ecoplay.

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