The Last of Us HBO - Endure and Survive
AVISO: Este artigo refere à primeira temporada de The Last of Us e contém spoilers sobre a mesma
"Endure and survive". Existe uma ideia de que esta teve de ser a postura de uma comunidade gamer condenada a receber adaptação desapontante atrás de adaptação desapontante durante as últimas décadas. Tivemos de aguentar estas adaptações e sobreviver na esperança de que, no futuro, talvez houvesse uma cura para a maldição da fraca adaptação. E independentemente de esta ideia estar certa ou errada, não há dúvidas que em The Last of Us está a prova de que uma adaptação de um videojogo não tem de ser dececionante.
"A melhor história já contada nos videojogos". Foram estas as palavras de Craig Mazin, o criador desta série e, previamente, de Chernobyl, em dezembro do ano passado, menos de um mês antes do lançamento do primeiro episódio de The Last of Us. Mas será realmente esta a melhor história alguma vez contada no mundo dos videojogos? Bem, a internet pareceu bastante dividida nos dias que se seguiram, o que se calhar não é de espantar, mas isso fez-me refletir sobre a minha própria opinião.
Desde o meu primeiro contacto com esta história através de vídeos no YouTube (não me julguem, não tive uma PS3) que achei esta história incrível e, quanto muito, essa opinião só foi validada quando joguei The Last of Us pela primeira vez em 2020, meses antes da sua sequela. Talvez não seja a melhor história de sempre. É certo que não é a minha preferida ou a que mais me impactou. Mas não me parece possível argumentar que não está, no mínimo, bem perto do topo. Será para sempre um marco na história dos videojogos e a sua narrativa estabeleceu uma fasquia que poucos jogos conseguiram superar nos últimos 10 anos.
Mas uma coisa é fazer um dos melhores videojogos de sempre, outra é adaptá-lo de forma fiel à televisão e satisfazer tanto o público que já conhece esta história, como aqueles que nunca sequer pegaram num comando. Felizmente, The Last of Us conseguiu superar todas as expectativas, ficando tão perto da perfeição como o jogo tinha ficado há 10 anos.
The Last of Us destaca-se no campo da ficção pós-apocalíptica pela atenção que dá às suas personagens. Esta não é uma história de ação, ou, pelo menos, esse não é o traço que a define, e isto é ainda mais verdade na série. The Last of Us coloca o foco nas suas personagens e na complexidade das relações que se desenvolvem entre elas elevando a sua história. A junção de Craig Mazin e Neil Druckmann (criador do jogo) produz ótimos resultados, sendo o seu sucesso em nenhum aspeto mais óbvio do que na forma como esta adaptação conseguiu capturar o espírito essencial da sua forma original e assim cativar todo um novo público.
O primeiro episódio abre com uma cena arrepiante em que dois epidemiologistas, convidados a falar num programa de televisão, discutem o perigo de microrganismos como vírus e bactérias para a saúde pública, sendo brevemente mencionada a palavra "pandemia" que, por razões óbvias, nos deixa automaticamente desconfortáveis com o tema da conversa. No entanto, um dos convidados não parece ter medo de vírus ou bactérias. "A humanidade tem estado em guerra com vírus desde o início. Por vezes, milhões de pessoas morrem, como numa verdadeira guerra. Mas, no final, vencemos sempre.", diz ele. Ao invés do seu colega, ele mostra-se muito mais preocupado com fungos, em especial um tipo de fungo que infeta, por exemplo, uma formiga e controla a sua mente e corpo como uma marioneta. E apesar de admitir que, à altura, seria impossível este fungo infetar humanos, ressalva que um aumento da temperatura do planeta obrigaria o fungo a evoluir, tornando possível uma infeção do ser humano, infeção essa para a qual não seria sequer possível produzir uma cura. E voltamos a sentir um calafrio na espinha. A menção da subida da temperatura global lembra-nos do nosso mundo, nos avisos sem fim de especialistas convencidos de que o aquecimento global se aproxima cada vez mais do ponto de não retorno, e faz-nos pensar no quão real tudo isto soa. Isto é algo que a série fará muitas vezes, lembrando-nos do facto de que tudo isto é um pouco mais realista do que gostaríamos de pensar.
Esta cena inicial marca o tom para o resto da série, conseguindo conquistar tanto aqueles que jogaram The Last of Us, como aqueles que nada sabem sobre esta história. Pertencendo ao primeiro grupo, cheguei a perguntar-me qual o sentido de retratar esta história na televisão. A verdade é que, como sabemos, os videojogos são uma plataforma perfeitamente capaz de contar uma história, por vezes até mais capaz do que a televisão. E tratando-se de um dos mais aclamados jogos de sempre, não parecia haver necessidade de voltar a contar esta história noutro meio. Afinal, quem já a conhece, dificilmente receberia algo de novo, e quem não conhece, poderia simplesmente jogar o jogo. Mas logo no primeiro episódio, na primeira cena, The Last of Us não só justifica a adaptação para a televisão, como também mostra a sua capacidade de entrelaçar cenas do jogo, às vezes exatamente iguais, com cenas completamente novas, por vezes até um episódio inteiro.
Olhemos agora para a história em si. The Last of Us segue Joel Miller (Pedro Pascal), um sobrevivente num mundo arrasado pela infeção cerebral do fungo Cordyceps, um fungo real que, como nos avisa o epidemiologista presente na primeira cena da série, faz do hospedeiro sua marioneta com o objetivo de espalhar a infeção até ao último humano vivo. Joel vê-se encarregue de levar Ellie (Bella Ramsey), uma criança imune à infeção, que pode conter a chave para desenvolver uma cura para a humanidade. Se este enredo parece simples e algo que já ouviram antes... bem, é porque é. A beleza desta história não está na sua premissa inicial, mas sim na forma como esta história se desenvolve, as dificuldades que as personagens enfrentam nesta viagem e as relações que se desenvolvem entre estas, em especial Joel e Ellie.
Para o sucesso original desta história foram fundamentais as suas personagens e, claro, os atores que as representaram, em especial Troy Baker (Joel) e Ashley Johnson (Ellie). E a série não é diferente, tendo colocado um enorme peso nos ombros das suas estrelas. Já sabíamos que Pedro Pascal tinha jeito para interpretar uma figura paternal distante e fechada ao mundo, mas capaz de fazer qualquer coisa para assegurar a segurança da sua criança, desde que o vimos como Din Djarin, em The Mandalorian. Aqui, Pedro Pascal representa ambas as facetas de Joel de forma perfeita. Consegue convencer-nos de que Joel é alguém com quem não gostaríamos de ter um desentendimento, ao mesmo tempo que mostra, principalmente nos últimos episódios, um lado mais carinhoso e paternal.
Em vários sentidos, parecia mais difícil encontrar alguém com os traços necessários para representar Ellie do que Joel. Para começar, Ellie é uma criança de 14 anos, o que significa encontrar um ator jovem, provavelmente com menos experiência e menos capaz de retratar a dualidade desta personagem. Depois, temos exatamente o facto de que a atriz escolhida teria de ser capaz de nos fazer acreditar que Ellie é uma criança, mas ao mesmo tempo não é uma criança criada num mundo normal, mas sim uma que apenas conheceu este novo mundo pós-apocalíptico. O próprio Neil Druckmann descreveu Ashley Johnson como "catching lightning in a bottle", ou seja, algo tão difícil que as probabilidades de o voltar a fazer com sucesso seriam ínfimas. Ainda assim, a escolha de Bella Ramsey para este papel provou ter sido genial. Ramsey é capaz de retratar o lado inocente de Ellie, cuja melhor exposição se encontra no episódio 7, Left Behind, mas também as características quase sociopatas desta criança que viu todas as pessoas importantes saírem da sua vida, de uma maneira ou de outra. O fascínio na sua cara quando Ellie vê Joel matar violentamente um guarda no fim do primeiro episódio, ou a satisfação que parece sentir quando dispara sobre o atacante de Joel, no quarto episódio, são exemplos das consequências que a sua infância turbulenta teve sobre Ellie, mas também da capacidade de Ramsey não só para entender esta personagem, mas também para a interpretar de forma credível.
Apesar de Ramsey ter sido, na minha opinião, a estrela desta primeira temporada (e será também a das próximas, imagino), quase todas as outras performances são (quase) perfeitas. Obviamente, como já disse, Pedro Pascal é fenomenal no papel de Joel, mas Nico Parker (Sarah) é o destaque da tragédia que dá início a esta história e Gabriel Luna traz uma agradável profundidade à personagem de Tommy. Nick Offerman (Bill) e Murray Bartlett (Frank) protagonizam uma bela história de amor no episódio 3, enquanto que Anna Torv dá uma nova vida a Tess e Scott Shepherd consegue, surpreendentemente, fazer de David uma personagem ainda mais desconcertante do que aquela que conhecemos no jogo. É também importante destacar Merle Dandridge, que interpretou o papel de Marlene tanto na série como no jogo, Troy Baker, a voz original de Joel, que na série foi James, o braço direito de David, Ashley Johnson, que deu vida a Ellie no jogo e, desta vez, à sua mãe e Jeffrey Pierce, que no jogo foi Tommy, mas na série interpretou Perry, um dos rebeldes de Kansas City. Na verdade, a única performance à qual consigo tecer verdadeiras críticas é à de Melanie Linskey (Kathleen) e mesmo assim não sei se isso seria justo. Digo isto porque a verdade é que a própria personagem não me pareceu muito interessante, razão pela qual tenho dificuldade em decidir se este é um caso em que a atriz foi mal escolhida ou se é o trabalho de escrita de Craig Mazin que merece mais escrutínio no que toca a esta personagem. Tendo a escolher a segunda hipótese, já que nenhuma parte da história dos rebeldes de Kansas City me cativou, tendo sido o aspeto que menos me agradou naquele que foi o meu episódio preferido.
Nesse sentido, gostava de me debruçar por um momento sobre o episódio 5, intitulado de "Endure and Survive". Talvez tenham achado estranho eu não ter mencionado Lamar Johnson (Henry) e Keivon Woodard (Sam) na lista acima. A meu ver, eles merecem mais do que uma simples menção, tendo o primeiro sido responsável pela minha performance preferida de toda a temporada (ignorando Ramsey e Pascal, obviamente). A secção da história retratada neste episódio sempre foi a minha favorita no jogo, ou pelo menos a que mais me moveu. A posição de Henry no final do episódio não é única a esta história. Na verdade, é um cenário bastante comum em outros jogos, séries, filmes e livros que lidam com esta problemática. Uma das personagens é infetada e as outras têm de lidar com a realidade de que a pessoa que conheciam vai, mais cedo ou mais tarde, deixar de existir e transformar-se naquilo que as personagens passaram o resto da história a combater. Mas, por uma razão muito pessoal, a dinâmica particular de Henry e Sam sempre fez com que o retrato desta situação em The Last of Us me chocasse muito mais do que em qualquer outro título.
Como disse, a razão para isso é um tanto pessoal, por isso peço que me permitam um momento mais sincero e íntimo. Em Henry e Sam, não consigo evitar ver um reflexo da minha própria relação com o meu irmão. Como um irmão mais velho, com um irmão 11 anos mais novo que eu, eu diria que é impossível não estabelecer esta ligação a Henry e Sam, encontrando semelhanças na forma como o primeiro protege o seu irmão ou nas suas tentativas de o distrair das adversidades do mundo lá fora. Claro, é também impossível não sentir o coração mais pesado no momento em que Sam ataca Ellie e Henry é forçado a fazer algo extraordinariamente corajoso, mas também algo com que, tal como Henry, eu próprio não conseguiria viver. E creio que, no fundo, essa é a beleza mórbida de The Last of Us. Todos nós vamos encontrar nestas personagens uma reflexão de algo na nossa vida, seja um determinado traço destas personagens, uma decisão que elas tomam ou, como neste caso, uma das relações que elas estabelecem. Um espelho sombrio, um espelho que queremos acreditar que não existe. Certamente que qualquer pai se consegue rever nas ações de Joel, principalmente no último episódio. Não interessa se ele está certo ou não. Não interessa se a produção de uma cura era viável ou não. O que interessa é que nenhum de nós sacrificaria a pessoa que mais amamos, independentemente de quantas pessoas isso pudesse salvar. The Last of Us não é uma série sobre zombies, não é uma série de ação, não é nada disso. The Last of Us é simplesmente sobre amor, no seu estado mais verdadeiro e não só sobre as coisas boas que fazemos em seu nome, mas também as más, as reprováveis.
A verdade é que não posso fazer uma análise extensiva a cada um dos nove episódios, apesar de não faltarem pensamentos e opiniões. Assim, deixo só uma breve nota sobre um episódio em particular. O episódio 3, "Long, Long Time" foi, sem qualquer dúvida, o mais belo episódio, servindo também para demonstrar a capacidade da série de se desviar do material original ou desenvolvê-lo para contar uma história que não teria sido possível no jogo. Nick Offerman e Murray Bartlett, como Bill e Frank, respetivamente, protagonizam uma das mais belas histórias de amor alguma vez contadas na televisão, e o facto de este ser um amor homossexual não é indiferente. Infelizmente (mas também previsivelmente), isso atraiu algumas críticas menos positivas, com algumas pessoas - que me custa a acreditar que tenham jogado The Last of Us - a alegar que Bill não era homossexual no jogo. O episódio 7 conta, mais uma vez, com uma relação homossexual, entre Ellie e Riley, mas o episódio 3, em particular, parece ter sido o destaque desta primeira temporada. No meio de uma história que não deixa de ser violenta, cruel e deprimente, este episódio viverá na memória de todos os que o viram como uma lembrança de que, mesmo nas circunstâncias mais terríveis, é possível amar e ser amado, mesmo que seja, no caso de Bill, por alguém improvável.
Independentemente da excelência do trabalho dos diferentes atores e argumentistas, um elogio especial deve ir para os cenógrafos, cujo trabalho deu vida ao mundo em que estas personagens vivem, desde a cidade em colapso no primeiro episódio, ao hospital no último, passando pela casa de Bill e Frank, Jackson, entre outros.
Apesar de em alguns momentos, principalmente nos últimos episódios, a história parecer um pouco apressada, a fim de atingir o clímax do episódio mais rapidamente e de alguns conceitos, como os Pirilampos serem apresentados sem a explicação apropriada, o que acontece maioritariamente no primeiro episódio, The Last of Us ultrapassou todas as expectativas, tornando-se o maior sucesso da HBO desde a última temporada de Game of Thrones. É pena não termos visto mais alguns infetados, mas há razões para isso, sendo uma delas o facto de, como disse, o essencial desta história serem as suas personagens, não os infetados. Além disso, aqueles que vimos, foram extremamente bem caracterizados, o que me deixa esperançoso para as próximas temporadas que, nas palavras de Craig Mazin, terão mais infetados e até novos tipos.
Não obstante estas pequenas imperfeições, é impossível argumentar que The Last of Us não conseguiu captar o espírito essencial do jogo: as personagens e as relações que se estabelecem entre elas, bem como a dicotomia entre um mundo cruel e momentos esperançosos continuam a ser os alicerces desta história. The Last of Us já era um dos melhores jogos de sempre. Agora é não só a melhor adaptação de um jogo de sempre, mas também uma das melhores temporadas de televisão alguma vez feitas.