Lost Ember


Ao longo da história humana, várias civilizações grandiosas foram subjugadas, aniquiladas e substituídas por outras, num ciclo constante de poder e sangue derramado. Mas o que aconteceria se, após a queda da civilização, não restassem mais humanos para reconstruir este mundo? A Mooneye Studios, um pequeno estúdio alemão com apenas 5 pessoas, dá uma resposta impressionante a esta pergunta com Lost Ember.

Este jogo surpreendente explora a forma como a natureza poderia reclamar este mundo de volta para si. Sem intervenção humana, restam os animais e as ruínas de um mundo perdido onde a memória é um bem escasso.


Neste universo existe a crença de que os humanos que viveram uma vida virtuosa irão ascender a uma dimensão celestial conhecida como City of Light. Aqueles cuja vida não cumpriu os requisitos necessários para essa ascensão divina, são reencarnados como animais no mundo terreno. Em Lost Ember, o jogador encarna um destes espíritos na pele de um lobo solitário. Logo no início do jogo, o nosso lobo encontra uma companhia improvável sob a forma de uma esfera de luz brilhante. Este personagem é também um espírito perdido e revela-nos que precisa da nossa ajuda para entrar na almejada cidade divina.

E assim começa uma história emocionante sobre amor, traição e redenção, numa aventura que irá cruzar o mundo dos vivos com o dos mortos. Ambos os personagens não têm memória da sua verdadeira identidade, algo que irá ser o motor para os lançar nesta jornada. Ao longo do percurso vamos encontrando memórias do nosso lobo na sua vida humana, e são esses fragmentos que avançam com a progressão do jogo e da sua história. Estas visões do passado oferecem não só pistas e informações sobre a identidade dos personagens como também fornecem um espelho para a civilização perdida e as suas várias facetas.

Narrativamente, Lost Ember aposta num tom poético, com uma história simples mas forte em emoções. Embora não seja complexa, a sua narrativa desdobra-se em nuances de cinzento, onde nem tudo o que parece é, algo que confere uma profundidade real à sua história.


O aspecto verdadeiramente fascinante de Lost Ember é também a sua principal mecânica: a capacidade de encarnar e controlar outros animais. Embora a principal forma do protagonista seja o lobo, temos a capacidade de habitar outras criaturas e experimentar os seus pontos de vista únicos. Esta mecânica é extremamente bem conseguida e oferece das experiências mais originais que encontrei num jogo. Cada animal tem uma habilidade única que auxilia o jogador a descobrir novos caminhos e possibilidades. Os movimentos de cada animal estão realistas, fiéis às especificidades de cada um e com uma fluidez admirável. A forma como vemos o mundo muda radicalmente de acordo com a criatura que incorporamos, com a perspectiva da câmera a reflectir e a emular a visão daquele animal.

Conhecer as profundezas de umas ruínas submersas através de um peixe, voar até grandes altitudes como um beija-flor ou cavar longos túneis na pele de uma toupeira. Experiências como estas e com outros animais, fizeram com que desse por mim a sorrir largamente enquanto jogava. São momentos de uma alegria pura e sem amarras que não são fáceis de serem encontrados na maioria dos jogos. É também digno de nota o cuidado na criação de detalhes próprios de certos animais que acrescentam um toque de graça à experiência, além de contribuírem para a imersão no jogo.


Não é surpresa se disser que o amor e respeito pelos animais está presente em cada detalhe do jogo. O que a mim me surpreendeu neste campo foi o quanto a minha empatia para com aqueles seres gerava preocupação de formas insólitas. Não porque alguma vez estejamos em perigo neste jogo, visto não ser possível morrer ou sermos alvo de violência. Mas dei por mim a preocupar-me em garantir que, ao voltar à forma original de lobo, o animal que eu tinha encarnado temporariamente estava “seguro”; ou seja, algo como, por exemplo, transformar-me em lobo ainda numa zona de água se estava em forma de peixe (porque é aflitivo ver o peixe saltar em terra).

O aspecto que imediatamente nos capta a atenção em Lost Ember é, sem dúvida, a sua beleza artística. Este é um jogo que nos arrebata visualmente desde o primeiro segundo. Cada mudança de cenário é um festim para os olhos, com uma boa variedade de ambientes para percorrer. Existem dois tipos de grafismo que correspondem a duas dimensões distintas: o principal onde a acção ocorre, e um secundário que retrata as memórias que vamos descobrindo. Embora sem o impacto visual do principal, os visuais do passado são dotados de uma beleza muito distinta e mais assente nas emoções do que numa representação fiel. A acompanhar de forma perfeita todo a dimensão visual temos o som primorosamente cuidado. A banda-sonora e os sons ambientes tornam Lost Ember uma experiência vastamente imersiva, sendo fácil perdemo-nos naquele mundo com gosto.


2019 estava a precisar de um jogo como Lost Ember. Uma obra delicada que nos incita a parar e a apreciar a beleza das coisas, mas sem o pretensiosismo que se pode temer que venha associado. Se Lost Ember fosse uma música seria “Let It Be”, pela forma como simplesmente deixa o jogador viver no seu mundo imaginário. Sem imposições, sem exigências, guiando gentilmente através do seu fio narrativo.

Nota: Esta análise foi efetuada com base em código final do jogo para a PlayStation 4, gentilmente cedido pela Plan of Attack

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