O Último a Jogar


Artigo de opinião de Gonçalo Martins, do Glitch Gamecast

The Last of Us part 2 saiu em Junho de 2020 acompanhado de um quase palpável e até asfixiante sentimento de grande expectativa que rapidamente se transformou numa tempestade de controvérsia, indignação e consequente batalha campal nas redes sociais e media especializada pelas mais diversas razões.

A grande expectativa era fácil de entender, era a sequela de um jogo que em termos de narrativa foi um dos mais marcantes da última década na indústria de videojogos e que rapidamente se tornou um ex-libris em termos de storytelling na mesma. A profundidade emocional que a Naughty Dog conseguiu criar entre as duas personagens principais do jogo tocou profundamente na mente e coração de muitos jogadores que se renderam a uma relação pai-filha que, embora enfrentando um mundo pós-apocalíptico, conseguiu sempre lançar aqui e ali momentos que aquecem a alma e que lembram que a esperança é sempre a última a morrer e que vale a pena lutarmos para permanecermos humanos.

A parte da controvérsia, confesso que me surpreendeu na altura porque não conseguia entender o porquê de tanto drama e celeuma em volta de temas como a diversidade, o excesso de violência e a gratuitidade da mesma no jogo e até os próprios soundbites de Neil Druckmann antes e depois do lançamento de TLOU2. Tudo isto já tinha sido retratado no primeiro jogo, de uma maneira ou outra, com mais ou menos intenção ou intensidade. A isto tudo juntavam-se os fantasmas do final que dividiu opiniões em todos os espectros da comunidade e indústria dos videojogos e de uma personagem que coiso e tal e mais não sei o quê (não “spoilarás” é o que diz um dos mandamentos da cultura pop).

A realidade é que raramente faço pré-reservas e esta Part 2 não foi exceção e no meio de tanta calamidade e opinião destrutiva resolvi parar e optar por não comprar a sequela daquele que é o melhor jogo que já joguei até à data (sem medos nem dúvidas).

Queria jogar The Last of Us Part 2 com a mente pristina de maneira a que fosse justo com a obra e com os criadores.



Dito e feito. Passados mais de 2 anos desde o seu lançamento decidi comprar e jogar da maneira que eu queria o passo seguinte da história iniciada em 2013.

Não é de todo a minha intenção fazer uma review, essa certamente já foi devidamente executada pelas mentes capazes dos reviewers da praça não só de Portugal como do resto do mundo mas não posso deixar de começar por enaltecer vários aspectos:

  • O mundo criado pela Naughty Dog neste jogo é fruto de um trabalho de sucesso em que cada detalhe foi tratado com um polimento e minuciosidade extrema. Desde as bravias florestas, aos vários acampamentos espalhados ao longo do nosso percurso, terminando numa Seattle em que o caos perfeito que só a mãe natureza pode criar se junta à obra humana criada pós-evento, tudo isto em cima de uma base que é a degradação de um mundo e de uma realidade que embora algo recente já está extinta. Tudo foi recriado de uma forma irrepreensível e até mesmo o arriscar na inclusão de um mini "mundo aberto" numa determinada altura do jogo foi uma agradável surpresa num jogo conhecido por ser extremamente linear e rigoroso na sua forma de direcionar o jogador pelo seu mundo e narrativa. Algo já experimentado pelo estúdio The Coalition em Gears of War 5 e com igual sucesso na minha opinião.

  • Um sistema de combate melhorado com novos movimentos e melhor fluidez, novas armas, fações novas com novos comportamentos e novos infectados com diferentes nuances em termos de combate que melhoram essa mesma experiência. Embora menos claustrofóbico que o primeiro jogo, consegui sentir com a mesma intensidade os momentos mais  fervorosos de combate. Sei que o gameplay é algo que divide os jogadores, uns gostam, outros acham que é bastante falível, quer no TLOU1, quer neste TLOU2. Eu faço orgulhosamente parte do primeiro grupo… gostos não se discutem, certo?

  • Uma banda sonora incrível, voice acting de excelência e efeitos sonoros mais que capazes de enaltecer os momentos de mais tensão.

  • Uma panóplia imensa de opções de acessibilidade que claramente justificam todos os elogios que foram dados nesse campo e é algo que deve servir de inspiração para outros estúdios. 

Não estarei a exagerar dizendo que tecnicamente este TLOU2 está no olimpo dos videojogos.

Resta comentar a narrativa e infelizmente é aqui que começam a ressurgir todas as memórias e traumas de 2020 aquando do lançamento do jogo, tudo aquilo que eu na altura achava extremamente exagerado e negativo, aqui e ali comecei a encontrar uma certa justificação ou pelo menos uma compreensão motivacional, mas primeiro quero esclarecer algo…

Tendo em conta que a Naughty Dog quis passar de uma perspectiva macro que impera no primeiro jogo e que acompanha toda a viagem emocional de Joel e Ellie com a salvação do seu mundo nas mãos como pano de fundo, para um cenário micro e redutor explorando apenas sentimentos e relações pessoais ignorando um pouco o que acontece no meio que os envolve, existe muito pouco no The Last of Us 2 que eu queira tirar, ou que ache que não devia de ter acontecido em relação à principal narrativa. O problema pra mim é que cada fatia deste enorme bolo narrativo foi explorada ao máximo no sentido de fazer sacar reações imediatas e fazer potenciar ao limite todo o shock value que cada cutscene poderia ter sem que por algum momento se tenha dado atenção ao desenvolvimento e crescimento das personagens, muitas delas novas na saga, tornando-as completamente dispensáveis visto que no fim ou se encontram futilmente assassinadas ou completamente desprovidas de relevância.

As personagens principais Ellie e Abby sofrem de alguma bipolaridade entre cutscenes e gameplay pois atos de contrição, ternura, reflexão e arrependimento contrastam com verdadeiras chacinas desprovidas de qualquer tipo de moral, moral essa incutida no jogo, em primeiro lugar, pelos próprios escritores do estúdio. Algo que transbordou para a relação de forças entre ambas, pois houve um certo desequilíbrio entre as duas personagens ao longo do jogo. Ellie foi descontextualizada em relação ao jogo anterior para que Abby pudesse brilhar mais e ser mais favorecida na narrativa. Ambas dividem o tempo de jogo e existe uma tentativa de apresentar a Abby a nós jogadores com um nível emocional e moral superior, para que estivesse pronta e com igual importância em relação a Ellie para o mais que esperado confronto no 3.º acto. Esse mesmo 3.º acto torna-se demasiado extenso e confuso e mais pareceu uma tentativa de mostrar 2 finais diferentes como se durante todo o jogo tivéssemos tido opções de diálogo que nos tivessem direcionado para caminhos diferentes.

A tudo isto junta-se um desconcertante desacerto cronológico dos momentos chave do jogo que, na minha opinião, e com algum engenho, inseridos noutro tempo e espaço teriam conferido ao final do jogo apresentado mais relevância e compromisso com o tema da vingança pessoal e dramas inerentes ao mesmo.



Neil Druckmann e companhia sabiam muito bem que tipo de produto estavam a lançar com este The Last of Us Part 2. Foram propositadamente divisivos, propositadamente violentos (embora justificados pela temática do jogo), criaram uma história para provocar reações das mais diversas e virais e com o objectivo bem marcado de agitar o status quo da sociedade em que vivemos. Apesar de bem intencionados, é pena que tenha sido um acto de auto-flagelo que incutiram na sua própria criação.

Quanto à personagem mártir e catalisadora desta história, essa, desde o início até ao fim... nem foi vingada, nem lhe foi feita justiça.


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