Indika
Indika, a personagem, é uma freira "presa" num convento nos finais do século XIX que vive em comunhão com o Diabo. Indika, o jogo, é mais difícil de definir, mas é um interessante estudo sobre religião, fé, devoção, opressão, dúvida, culpa e muito mais, onde a desorientação e ambiguidade estão constantemente presentes.
O início de Indika não perde tempo a marcar o tom que vai colorir as próximas 4 horas. Começamos num mundo invertido, muito ao estilo de um jogo de arcada de 16 bits, onde uma personagem cai livremente, e com a qual podemos interagir para colecionarmos os primeiros pontos da nossa aventura, uma forma bastante abrupta de contrariar as expectativas de qualquer jogador, que naturalmente esperaria ver uma panorâmica de uma paisagem da Rússia do século XIX no seu lugar.
Mas nada em Indika é por acaso, e não demoramos a conhecer a nossa personagem e a vida que leva neste convento. Os primeiros momentos que passamos com Indika (após aquela estranha introdução), revelam-nos, tanto através da atitude das outras freiras, como de várias pistas contextuais e até da voz do próprio Diabo, que ecoa dentro da cabeça de Indika, que a jovem freira não se encaixa neste ambiente. Certamente estarei longe de ser o único a notar que Indika é uma contradição. Vemos, desde logo, a sua devoção à religião e o seu forte desejo de ser pura, piedosa e de se relacionar com as suas companheiras neste ambiente. Mas, como podem imaginar, isto não é fácil para alguém com uma ligação tão próxima ao Diabo. Esta ligação atormenta Indika a todos os momentos do dia, dificultando as suas repetidas tentativas de se relacionar com as suas companheiras e de lhes provar a sua devoção religiosa.
E são estas tão vincadas contradições que fazem de Indika uma personagem infinitamente mais interessante do que ela tem qualquer direito de ser. Indika é uma constante pilha de nervos e inquietação, algo demonstrado não só no seu diálogo (muitas vezes com a voz na sua cabeça), mas também de forma brilhante no seu comportamento físico, seja a forma como mexe constantemente no terço que traz na mão, os seus olhos incapazes de pousar num objeto sem saltarem imediatamente para outro lado ou as suas unhas roídas.
Esta vida de convento que ficamos a conhecer nos primeiros momentos do jogo coloca-nos não só no corpo, como na mente de Indika. À medida que realizamos mundanas e repetitivas tarefas atribuídas a Indika pelas suas superiores, ficamos a conhecer o Diabo que vive dentro de si, uma presença magnificamente sarcástica e cética, mas sempre divertida, que preenche um conjunto de funções, desde narrar os acontecimentos, a revelar os pensamentos mais sombrios de Indika e desafiar as suas crenças e a sua virtude religiosa. Estes momentos desvendam uma vida monótona, ingrata e dura e, através da voz demoníaca dentro de Indika, descobrimos que ela ambiciona voltar a conhecer o mundo para além das paredes do convento onde se vê presa.
É, então, com alívio e expectativa que Indika recebe a tarefa de entregar uma carta a um mosteiro distante e instruções firmes para que não a abra. O resto da nossa aventura desenrola-se então com esta viagem ao longo de um mundo frio - literal e figurativamente - e opressivo, que mistura de forma impressionante um realismo severo com uma magia típica de um conto de fadas.
O mundo criado pela Odd Meter é bastante mais impressionante do que possa parecer à primeira vista, levando-nos não só por paisagens brancas de neve, mas também por cidades fechadas e sufocantes e fábricas despidas de vida. Por muito diferentes que estes ambientes sejam, todos eles partilham algo, esta falta de vida, este peso e opressão. Ainda assim, Indika destaca-se nestes meios, nunca parecendo encaixar verdadeiramente em nenhum deles. Talvez esta seja apenas a forma como vemos estes lugares através dos olhos da nossa personagem. Mais uma vez, há um esforço constante para nos sentirmos ligados a Indika e para sentirmos tudo como ela sente, algo que é evidenciado pelo uso de ângulos de câmara apertados e, por vezes, colados à testa de Indika durante algumas sequências cinematográficas.
O mais comum, no entanto, é que a câmara nos coloque o mais próximo dos seus ombros possível, muitas vezes apontando até para o chão à sua frente, ao contrário do que esperaríamos de outros jogos, que colocariam a ênfase no mundo aberto que podemos explorar. Aqui, o foco é total em Indika, e o jogo vence por essa decisão.
A viagem física de Indika ganha uma nova dimensão quando esta se cruza com Ilya, um prisioneiro fugitivo, mas é a sua viagem emocional que realmente ganha tração a partir deste momento, servindo Ilya de espelho temático para Indika, já que o primeiro acredita ser um milagre divino personificado. É a partir daqui que começamos realmente a aprofundar-nos nos temas filosóficos de Indika, com as suas conversas com Ilya e a sua voz interna a abordarem uma panóplia de temas, incluindo culpa, desejo, esperança, luto, amor, opressão, pecado e até a natureza da alma.
Bem mais simples que as temáticas que Indika tenta abordar são as suas mecânicas. Ao contrário do que muitos (incluindo eu) possam ter esperado quando viram os trailers, Indika é um jogo relativamente simples, deixando a maioria do trabalho para a sua narrativa e personagens. Durante grande parte do jogo fazemos pouco mais do que andar e procurar objetos e artefactos religiosos que nos recompensam com pontos, algo que o jogo nos diz de forma insistente ser inútil, já que estes não têm qualquer propósito - uma das várias metáforas ao longo de Indika cujo significado o jogador desvendará à medida que progride nesta viagem. Ocasionalmente, é requerido do jogador que este resolva puzzles para poder avançar, mas estes limitam-se, largamente, a mover objetos para que possamos alcançar uma superfície elevada. Eventualmente, damos de caras com algo mais evoluído, mas mesmo os puzzles mais complexos em Indika são relativamente simples.
Isto não significa que Indika é totalmente desprovido de qualquer mecânica interessante. Por exemplo, quando, fruto do tumulto existente dentro de Indika, o mundo à sua volta se quebra, ficamos à mercê do inferno e da gritaria incessante daquela voz demoníaca que, por esta altura, já conhecemos muito bem, sendo esta situação apenas remediada quando, com o premir de um botão, Indika recorre às suas rezas para consertar o mundo e calar a voz dentro de si. Infelizmente, esta mecânica é abandonada demasiado cedo, na minha opinião, mas Indika ainda tem algumas surpresas guardadas para o final do jogo que agradarão tanto àqueles que gostam de um bom quebra-cabeças como àqueles que apreciam ver as consequências do conflito interior de Indika na forma como esta vê o mundo à sua volta.
Indika é, sem dúvida, um jogo único, mas não tão absurdo como os trailers possam ter sugerido. Enquanto que pode ser simples em relação às suas mecânicas, Indika é um destemido e desavergonhado estudo sobre religião, devoção, opressão, culpa, trauma, livre arbítrio e muito mais. Indika não responde, necessariamente, a todas as perguntas que faz. Ao invés, coloca esse ónus no jogador, cuja interpretação fará de Indika o que este quiser que seja. Acima de tudo, Indika é confiante e sabe o que quer ser, ainda que caminhe uma ténue linha entre um realismo impiedoso e o absurdo, mas fazendo-o exemplarmente, de forma a que seja apenas perturbador o suficiente para se entranhar na pele de cada jogador, deixando-o com questões que o acompanharão muito depois de ver os créditos rolarem.
Nota: Análise efetuada com base em código final do jogo para a PlayStation 5, gentilmente cedido pela 11 bit studios