Baldur's Gate III


Quem se lembra dos livros Aventuras Fantásticas, que nos faziam viajar por diferentes mundos, munidos apenas com um par de dados e um lápis? Esta foi a minha primeira experiência no que seria uma diversidade de gostos pelo mundo dos RPGs ou jogos de aventura, fossem eles digitais ou até mesmo jogos de tabuleiro. Algo que adoro explorar são os boardgames, atividade que reúne um grupo de amigos à mesa em torno de jogos que vão dos mais abstratos a mapas gigantescos, complexos e com enormes figuras lá colocadas. Foi algo que nasceu em mim desde novo, mas não foi por causa das partidas de Risco ou os Natais passados a jogar Monopólio.


Era uma espécie de bicho adormecido, que despertou quando tive o meu Pentium III em plena época de pânico quando o Bug do milénio, o Y2K, ia bloquear todos os computadores no mundo. Tinha um acesso razoável à internet e um bom computador para explorar títulos como Diablo II, Age of Empires ou Legacy of Kain, que me ocupavam grande parte do tempo: afinal era um jogador de consolas que estava agora a explorar todo um novo mundo. Foi no meio de uma maré de jogos de estratégia, first-person-shooters ou as mais variadas aventuras point and click que surge Baldur’s Gate II, o meu primeiro contacto a sério com o universo de Dungeons & Dragons (D&D ou DnD) que… bem, não me agarrou à primeira. De todo! Isso acontece mais tarde com Neverwinter Nights, o clássico da BioWare que me sugou a alma para o universo dos Forgotten Realms e o mundo de Faerûn. Só então voltei a jogar os primeiros Baldur’s Gate, Planescape e Icewind Dale, com um novo entusiasmo por querer absorver tudo o que era daquele tema.

Passado cerca de duas décadas surge, finalmente, Baldur’s Gate III! Um jogo já há muito esperado, que teve longos anos em Early Access permitindo a todos os que o comprassem explorar muito do jogo mesmo antes de estar totalmente afinado. A Larian Studios tinha aqui um grande desafio, mas um terreno que já estavam mais que habituados pois, afinal, haviam lançado os Divinity: Original Sin que namoram muito os conceitos de DnD sem pertencer ao mesmo. E foram muitos os jogos ao longo destas décadas que me piscavam o olho, séries como Fallout, Dragon Age, Fable ou Mass Effect onde sentia que as minhas escolhas e ações tinham uma forte influência no jogo, mas nenhuma delas conseguia trazer aquela sensação criada por Neverwinter Nights. Queria algo onde a minha criatividade era recompensada, até porque, entretanto, havia feito várias campanhas de DnD com amigos usando apenas o mIRC e umas folhas para manter o registo da minha personagem. “Vou conseguir abusar do jogo como em Neverwinter Nights?” pensava, enquanto criava meticulosamente a minha personagem, pois ia ser o rosto desta nova aventura, logo ali sentindo o peso das minhas escolhas, sabia que dependendo da raça, classe, habilidade e estatísticas iria estar a influenciar o rumo do jogo: "ter pontos em carisma vai ser importante para o meu Sorcerer", pensei, fosse em combate ou para convencer inocentes aldeões que eu seria a solução para os problemas dele, a troco de alguma recompensa.


Tudo isto são coisas que facilmente afastam muitos jogadores, que logo no momento de criação da personagem existem tantas opções de classe, habilidades que, ainda por cima, são ferramentas que vão além de simplesmente dar dano ou curar, que assoberbam quem não esteja minimamente habituado às Character Sheets de DnD, ou de RPGs onde prima este tipo de customização. Mesmo quando o próprio jogo recomenda tudo o que é necessário para cada classe, um simples subir de nível deixa-nos à mercê de dezenas de novas habilidades que temos de escolher, sendo que se não estivermos felizes com as nossas escolhas podemos voltar a configurar quase tudo mais tarde. Existem ainda um conjunto de personagens que podemos escolher, elas que já têm uma história mais definida e que se juntam à nossa demanda no decorrer da aventura, mas, independentemente de com quem jogamos, a narrativa irá levar-nos sempre por um caminho mais ou menos definido, sendo que o que muda é o que fazemos na história. E assim temos um jogo que há muito eu aguardava, onde a história se ia adaptando às minhas escolhas, onde praticamente tudo o que fazia influenciava o que acontecia, das coisas aparentemente irrelevantes ao rumo geral que a história seguia. Onde o azar aos dados podia ter consequências imediatas ou que se faziam sentir muito mais tarde, criando sucessivos efeitos em cadeia que me acompanharam até ao fim da jornada. Onde uma simples noite de descanso fazia avançar determinados eventos no jogo que, simplesmente, não esperavam por mim, pois certas personagens vêm a sua curiosidade recompensada com tragédia, ou algo na iminência de acontecer não esperava muito mais tempo.

Claro que podemos sempre voltar atrás um pouco no jogo, se vimos que as nossas decisões não foram as melhores e queremos seguir um outro caminho, ou gravar em momentos chave onde o lançar do dado vai definir o nosso destino, carregando o save várias vezes até sair o resultado que queremos (ato conhecido como “save scumming”), e somos livres de o fazer se tal nos dá a melhor experiência de jogo. Afinal de contas, não é assim tão diferente de quando voltávamos atrás nas páginas nas Aventuras Fantásticas quando encontrávamos a nossa morte. A minha aventura foi à descoberta, levando com as consequências das minhas ações até ao fim, por muitas asneiras que tenha feito. Tive momentos felizes que terminaram em festa, após uma missão concluída com sucesso, ou momentos catastróficos em que me sentia ao volante de um grande veículo desgovernado enquanto via tudo a arder à minha volta, matando até personagens importantes, entre outras coisas. Estava a ser o tipo de aventura que há muito queria, senti-me de novo nas minhas sessões de DnD ou em Neverwinter Nights a jogar em campanha com amigos, onde era constantemente procurado por personagens por meros acontecimentos que saíam do meu controlo. Coisas inocentes e irrelevantes, juro!


Muito do que aconteceu foi o resultado do rumo que eu, direta ou indiretamente, estava a criar através das minhas ações, que começam logo nas primeiras horas de jogo. Ramificações distintas ao aliar-nos com uma personagem em vez de outra, por não cair nas graças de alguém que nos passa a odiar pelo que fizemos, ou por sermos atacados por alguém que não gostou muito da nossa resposta, fazendo com que mais tarde não estejam vivos para nos dar alguma informação ou item preciosos. Está a ser bastante interessante acompanhar as aventuras que muitos outros jogadores estão a viver, partilhando as suas façanhas enquanto as comparo com o rumo que a história levou na minha campanha. É certo que não mudam radicalmente, e embora optemos por um caminho ou outro o destino será o mesmo, mas não é exagero afirmar que dificilmente duas histórias serão iguais, mesmo quando seguimos caminhos semelhantes. A minha personagem ser um Sorcerer Dragonborn, por exemplo, deu acesso a opções únicas em diálogos, ou fez-me resolver pequenos puzzles com o mínimo esforço, algo que não via acontecer de igual modo com outras personagens que tinham de procurar outros meios para a mesma solução, ou até mesmo soluções bastante diferentes.

Não são apenas coisas que surgem em diálogos, pois à semelhança de DnD vi quase sempre a minha criatividade ser recompensada pelo jogo, entre evitar cruzar-me com determinadas personagens pois as meti a dormir enquanto passava sorrateiramente por elas, conseguir evitar banhos de sangue por ser possível comunicar com os animais ou mortos à minha volta. Irrita-me, no entanto, que haja um conjunto de itens que têm um uso óbvio, como cordas que poderiam ser usadas para os mais variados fins aqui não terem mesmo utilidade alguma, sendo apenas para vender. Já a exploração convidou-me sempre a ser curioso e fui, geralmente, recompensado até mesmo com sequências de história que nunca iria experenciar não tivesse entrado num simples poço, ou por ser capaz de lidar com certos acontecimentos que outra personagem com outra classe ou raças diferentes não seria capaz. No próprio combate abre-se um incrível leque de possíveis estratégias que podia aproveitar ou criar situações vantajosas que iam além das habilidades das personagens, até porque o próprio terreno pode (e deve) ser usado a nosso favor, pois os inimigos o usarão contra nós. Um combate que inicialmente parece impossível afinal torna-se bastante simples, se optarmos por encher o terreno onde está o adversário com óleo e pegar fogo a tudo, ou aproveitar a água presente para eletrocutar todos que lá tocarem, com uma simples seta munida de eletricidade.


Os 3 níveis de dificuldade presentes no jogo convidam também a um maior número de jogadores aventurarem-se em Baldur’s Gate III, mesmo para os que não se sintam tão confortáveis a jogar algo tão complexo, com imensas escolhas e estratégias. O modo mais fácil (Explorer) alivia-nos um pouco a tensão no combate, enquanto o modo mais difícil (Tactician) obriga-nos a pensar em estratégias mais seguras, certificando-nos que temos sempre vantagem em combate. No entanto a diferença de dificuldade não é avassaladora, o jogo não se torna básico no modo fácil nem injustamente mais difícil no modo difícil e, a qualquer momento, podemos mudar a dificuldade. Tendo jogado a campanha no nível de dificuldade Normal houve um ou outro combate que tive de repetir algumas vezes até o concluir com sucesso, durante a campanha toda. Isto… até chegar ao arco final do jogo, onde tive combates desnecessariamente frustrantes e que se estendiam ao ponto de se tornarem bem desinteressantes. Algo que umas horas dedicadas resolveram, mas podia ter sido bem melhor trabalhados, que puxassem por alguma criatividade ou estratégia que não fosse, simplesmente derrotar inimigos armados até os dentes.

E olhando os momentos finais do jogo, foi no último act que senti que precisava de bastante mais atenção ou carinho, naquela que é uma aventura incrível! Pois mesmo com os seus mapas relativamente reduzidos, há tanto, mas tanto a explorar que as horas se desdobram em centenas de horas de jogo com imensas missões secundárias em mãos que, na realidade, parecem parte da missão principal. São imensos os segredos sempre à nossa espera que podemos nem sequer descobrir, pois a nossa equipa toda falhou um check de percepção e não reparou no botão escondido na parede, ou um enorme monte de terra que escondia um tesouro mesmo aos pés deles. Inúteis, todos eles. Todo o jogo conta com isto, em todos os cantos dos mapas, o que me divertiu imenso pois gosto de explorar absolutamente tudo e apanhar todos os itens que tiver à disposição. Mas, novamente, o ato final parecia mesmo apressado, ainda que bastante bom, mas entre precisar de trabalho de otimização a própria história aqui foi muito linear e, muitos dos momentos geniais eram consequências do que havia feito nos capítulos anteriores. A própria conclusão da história... não me convenceu, faltou-lhe muita coisa. Pois todo o resto está fenomenal, tudo foi uma caixinha de surpresas onde uma simples passagem escondia toda uma caverna onde rituais satânicos ocorriam, em nome de alguém, e a culpa não era minha se tinha de matar um grupo de pessoas que, assim por acaso, repararam em mim.


O jogo é isto, senti-o como uma narrativa em primeiro lugar, com imensos diálogos e interações com um leque enorme de personagens que nos aparecem pela frente, influenciando em muito a minha aventura. Só depois um jogo com imensa exploração, por mapas onde lidamos com imensos entraves, coisas que nos barram o caminho ou armadilhas à nossa espreita. E, por fim, um RPG por turnos com onde a estratégia é vital, com combates que me deu um gozo tremendo de poder explorar estratégias pensadas com resultados tal e qual como os imaginei. Não esperem também um RPG onde rapidamente vão subindo de nível, pois aqui o limite máximo de nível 12 reflete o que será "humanamente normal" numa campanha de DnD, sem ter acesso a habilidades capazes de alterar a própria realidade, ou até mesmo Wish -- a magia mais poderosa possível -- capaz de fazer qualquer coisa. Contudo muitas vezes quando o subir de nível é todo um evento, que temos de pensar nas habilidades que queremos ensinar à nossa personagem que subclasse escolher, quando existem, tudo para se adaptar ao estilo de jogo de cada jogador, tal como à equipa que tem pela frente. E aqui todas as classes são viáveis, os diferentes tipos de invocadores de feitiços têm ferramentas distintas, um Rogue e um Ranger imensos truques na manga e quem preferir um estilo de jogo mais de "porrada" tem também boas escolhas entre Fighter, Barbarian ou Monk. Mesmo Bard, muitas vezes alvo de piadas, é bastante poderoso. Depois há ainda todo um mundo de poder ter mais que uma classe na personagem, sendo que a soma dos níveis irá dar sempre no máximo 12, mas há tanta, mas tantas combinações diferentes que só quem estiver mesmo dedicado ao jogo irá tirar partido na sua totalidade.

E isto é precisamente aquilo que há mesmo muito tempo queria, algo que me ocupasse o espaço vazio deixado por Neverwinter Nights há muito, que me faz querer voltar a jogar, sabendo que uma nova aventura irá ser diferente. Uma história muito bem conseguida, que me agarrou e surpreendeu por completo, embora que depois de longas horas a pensar sobre as minhas decisões houve ali momentos chaves em que tudo se decidia com base de uma escolha A, B ou C, descartando muito do que a minha personagem havia feito a aventura toda e recordando-me em parte de controvérsias associadas a Mass Effect 3. E sim, há um leque de possíveis finais diferentes e todos vão ter sequências que mudam dependendo da aventura, se demos atenção às histórias individuais de cada personagem, tal como as personagens que nos acompanharam até ao fim. Pois são todos os pequenos apontamentos durante a jornada que nos vão marcar no final, o que fizemos por quem nos acompanhou, as decisões definitivas que iriam mudar para sempre todos os membros da equipa.


Também há que dar todo o mérito à Larian Studios, não só pelo esforço e dedicação como a notória paixão que tiveram ao criar Baldur’s Gate III, um jogo que sai completo sem muitos dos hábitos ditos “normais” dos dias que correm, com coisas presas por detrás de pagamentos adicionais ou conteúdos extra só em versões específicas. É um jogo ainda a ser corrigido, há imensas coisas melhorar, entre bugs de personagens que não aparecem em sequências ou tiques constantes enquanto conversam, mas nada que bloquei ou arruíne o jogo em si. Há mecânicas que deveriam ser introduzidas, como a possibilidade de aceder ao inventário e equipamento das personagens que temos no acampamento, mas não se encontram na equipa que forçadamente tínhamos de estar constantemente a retirar alguém da equipa para poder aceder aos restantes. Ou poder enviar para o acampamento personagens de outros jogadores com quem jogamos online, mas tiveram-se de ausentar numa ou noutra sessão. Mesmo o controlo dos movimentos pode ser melhorado, por muitas vezes via as minhas personagens presas no cenário, algo que acontece ao jogar com rato e teclado, mas, com um comando, os controlos são mais à “RPG convencional”. O que mais me frustrou, contudo, foi perder cerca de 5 horas de jogo devido a erros de sincronização enquanto gravava, que acabou por não gravar de todo, horas que eventualmente recuperei e avancei mais rápido no jogo, até porque já sabia o que fazer. São coisas a limar, que não me retiraram o gosto enorme que tive com o jogo, que não me afastaram de já ter começado uma segunda campanha.


Foram longos, longos anos de espera por um jogo na sucessão de Neverwinter Nights e a sua sequela, que Baldur’s Gate III corresponde excelentemente, superando de longe mesmo o original da BioWare de 2002 e que deveria ser considerado como um padrão para quaisquer jogos que pertençam ao universo DnD ou semelhante (quem sabe, um Neverwinter Nights 3?). É um jogo que me vejo a voltar vezes sem conta, que facilmente alinho numa campanha com amigos através do modo cooperativo online, deixando a nota que vão ter de acartar com todas as decisões caóticas que a minha personagem irá tomar, mas roleplay é isso mesmo. Um jogo que serve de ponto de entrada para os que sempre tiveram muita curiosidade em experimentar o universo da Wizards of the Coast, mas sempre ficaram de pé atrás por parecer demasiado denso. Baldur's Gate III é uma aventura épica que facilmente vos irá ocupar centenas de horas de jogo, que podem ir experienciando com calma, atenção e muito entusiasmo!


Nota: Análise efetuada com base em código final do jogo para a PC, adquirido pelo autor do artigo.

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